O que significa a intervenção do Governo na UFRGS

*Este é um texto de opinião da Resistência Popular Estudantil de Porto Alegre
 
Em mais um ato que desrespeita a já enfraquecida democracia interna e a autonomia universitária na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nomeou Carlos André Bulhões Mendes para o cargo de reitor da universidade.
 
Carlos Bulhões compõe a chapa menos votada (com apenas 1860 votos) na consulta à comunidade acadêmica, que inclui professoras e professores, técnico-administrativos e estudantes (graduação e pós), sendo, portanto, o terceiro colocado da lista tríplice encaminhada para o Ministério da Educação (MEC) em julho deste ano.
 
 
Aqui, se faz importante salientar que a chapa eleita através desta mesma consulta para a reitoria foi a de Rui Oppermann e Jane Tutikian, mesmo tendo recebido a segunda maior quantidade de votos (4261 votos a menos que a oposição). Isso se deu pelo fato de não haver paridade de votos: está em vigência um sistema que atribui ao corpo docente 70% do peso na eleição para a reitoria, restando apenas 15% para o corpo discente e 15% para os técnico-administrativos. Caso houvesse paridade, a chapa eleita seria a de Karla Müller e Cláudia Wasserman, que recebeu 8947 votos, configurando, portanto, a maior quantidade de votos da comunidade acadêmica.
 
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Porém, nem a primeira nem a segunda chapas mais votadas foram nomeadas, e sim a terceira. A nomeação de um interventor, isto é, um servidor alinhado às ideologias, aos pensamentos e às práticas do governo dentro das universidadesque tem sido, desde que chegou ao poder, cortar investimentos e desprezar o que se produz de conhecimento científico e crítico, bem como as demandas de toda comunidade acadêmica – não é novidade neste que é um dos governos mais antidemocráticos da nova república brasileira.
 
Autonomia universitária é a ideia de que estudantes e trabalhadoras e trabalhadores das universidades, ou seja, quem realmente faz parte da vida da instituição, ajudem a decidir os rumos das faculdades. Por que é importante defendê-la?
 
Há no mínimo três elementos a partir dos quais devemos analisar o atual processo que não deve ser visto de modo isolado ou descolado da conjuntura que estamos atravessando. Primeiramente, lembrar que o campo da educação está colocado como inimigo do governo, pois este entende que é onde se articula parte dos movimentos de esquerda; também a ampliação dessa investida estratégica para inserção da ideologia conservadora, antieducação e anti-ciência do governo Bolsonaro, tendo em vista o que está em processo em diferentes universidades do país; e por último, a fragmentação e enfraquecimento das lutas dentro da esquerda brasileira e, consequentemente, dentro dos Movimentos Estudantis.
 
Em agosto de 2019, Bolsonaro nomeou Marcelo Recktenvald, um negacionista anti-ciência – conforme pode ser visto em suas próprias redes sociais – para a reitoria da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Marcelo Recktenvald também estava em terceiro lugar na lista tríplice encaminhada ao Ministério da Educação (MEC) meses antes. No mesmo ano, as mesmas intervenções ocorreram em outras universidades, como na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), desconsiderando as listas tríplices protocoladas e, portanto, ferindo a autonomia universitária, prevista na Constituição.
 
Portanto, para se analisar esse processo é necessário perceber o contexto, pois essa articulação e ataque ideológico na educação foi ensaiado no último ano (2019) na UFFS, e atualmente se faz presente na realidade de outras Universidades, como na UFPR e na UFPEL. É importante lembrar que a possibilidade de nomeação de reitores pelo Governo Federal que desrespeite a consulta à comunidade acadêmica é uma herança da ditadura militar e que, mesmo que desde a época da redemocratização não se tenha casos de uma intervenção ideológica conservadora e autoritária como a que o atual governo está buscando imprimir sobre o ensino superior, nenhum governo alterou a possibilidade de intervenção. Em momentos como esse, em que o governo toma nossa classe como um inimigo, investindo na censura da educação, visto seu potencial emancipatório, os ataques liberais e arcaicos fazem parte de um projeto de educação como mercadoria.
 
A partir do acúmulo de elementos mais recentes, percebemos que as últimas lutas combativas e organizadas que tivemos, traçadas a partir da organização de setores da educação, foram as ocupações de 2016 e a Instância Deliberativa CO (Comissão Organizadora) dos atos contra a PEC 55. Ambas compostas por diversas organizações, coletivos e pessoas independentes que fizeram valer o fortalecimento de instâncias democráticas, propositivas e combativas para incidir sobre os ajustes através de pressão popular. Desde então passamos por anos de fragmentação das lutas e do enfraquecimento de uma esquerda aguerrida.
 
O Governo Bolsonaro ataca de forma radical a luta contra estudantes, professoras e professores e demais trabalhadoras e trabalhadores da educação, então a luta em defesa do ensino público de qualidade também precisa ser radicalizada.
 
Muitos de nós que militamos dentro do movimento estudantil já estávamos sinalizando essa possibilidade de rompimento com a autonomia da universidade, seja pelos debates internos em cada coletivo, em grupos dos nossos cursos, ou junto às e aos nossas/os colegas. Nesse momento se mostra inadiável e urgente o diálogo, fortalecimento e radicalização das categorias vinculadas à educação, principalmente do setor estudantil que se encontra dentro das universidades para que consigamos resgatar a força dos recentes processos de luta que trabalhamos e assim enfrentar as intervenções que se alastram pelas universidades do Brasil.
 
Não podemos naturalizar a situação e deixar de olhar para as profundas consequências que irão se instaurar: na assistência estudantil, nas bolsas de pesquisa, nos ataques à produção do conhecimento científico, principalmente, às ciências humanas, dentre várias outras problemáticas que se intensificarão. Se já não poderíamos aceitar uma reitoria que não foi eleita pela maioria dos votos, dada a falta de paridade, menos ainda podemos aceitar tamanha imposição. A bandeira em defesa da autonomia das universidades e da paridade deve ser erguida, por nós, desde já, até a vitória. 
 
Não podemos esperar para ver as consequências desses ataques – que inclusive podem começar a minar não só o ensino superior, mas todo campo da educação, de diferentes formas – e deixarmos que se tornem a normalidade. A hora de lutar é agora, a proposição estudantil deve ser expressiva para que mostre, materialmente, através da ação, o significado da frase que muito já reverberamos com grande convicção:
 
Quem não pode com a formiga, não atiça o formigueiro