Esse é um texto de opinião e não reflete, necessariamente, a posição do Repórter Popular
Meu singelo posicionamento – e dou essa qualidade ao que escrevo não por falsa humildade ou cortesia, mas porque não tenho condições materiais de disputar em igualdade com pessoas que escrevem nas hegemônicas fontes midiáticas brasileiras, e isso não me abala, pois ser exaltado pela Globo, O Globo, CNN etc., para mim, pode ser a pedra de toque do tipo de pensamento que discordo absolutamente, do pensamento ruim e fétido de uma classe média intelectual que lambe-botas da burguesia e seus mecanismo de opressão (a ordem, a opressão militar e jurídica, o Estado, o capital etc.) – sobre a polêmica da última semana entre antifascismo e antirracismo é “curto e grosso”: Essa controvérsia é uma falsa polêmica.
Questão falsa promovida por vozes estranhas, paralisantes e reativas que existem dentro dos movimentos negros (vozes que falam em Black Excellence [Excelência Preta], Black Billionaires [Bilionários Negros], “Pretos no topo”, ideal romântico da África etc.) e em nada são condizentes ao pobre e desigual padrão de vida a que somos efetivamente submetidos no mundo contemporâneo.
É de se impressionar (ou não…) a rapidez e o esforço intenso, quase tão automáticos como os robôs da fake news, dessas vozes de deixarem claro a deslegitimidade da insurgência popular, das coalizões de lutas, das pautas por vidas dignas, e fazerem um apelo para políticas metafísicas – efetivamente conservadoras, como os ideais do corriqueiramente admirado Marcus Garvey – ou de pautas “em si” que o Ser Negro, na sua essência – há muito tempo abandonei a Igreja e o messianismo para voltar a acreditar em essencialidades, povo eleito ou profeta! -, no seu sangue, defenderia de modo “a priori”. Ocultados na ideia de um arquétipo negro, uma neutralidade do sujeito, essas vozes estranhas nos vendem uma conformidade personnalité (“feito para você!”) em que a luta política negra é transformada em apenas uma estratégia de inserção, de colaboração ao status quo, de formação de uma elite melanodérmica. Indo assim na contramão do que o movimento negro contemporâneo – em nomes como os de Lélia Gonzalez e Abdias Nascimento – vem afirmando, desde os anos de 1970, sobre a importância de um movimento negro político e revolucionário que não se esconde por detrás de identidades metafísicas. Aqui, faço das minhas palavras as de Lélia Gonzalez:
Aí me recordo daquela frase de Simone de Beauvoir quando ela diz: “a gente não nasce mulher, a gente se torna”. Do mesmo modo nós não nascemos negros, nós nos tornamos negros! A gente nasce “pardo”, “azul-marinho”, “marrom”, “roxinho”, “mulato claro” e “escuro”, mas a gente se torna negro. Ser negro é uma conquista (GONZALEZ, 2018, p. 226-227).
Como diz Gonzalez, ser negro é uma conquista, isto é, dá-se em disputa, no enfrentamento, nas manifestações, na política, não na epiderme (ou não somente nela). Por isso, discordo, revolto-me e digo “Não, já basta” veementemente a cada publicação, discurso, vírgula e palavras de ordem que essas vozes estranhas fazem, pois partem de um desconhecimento ou de uma leitura ruim (sumamente liberal/neoliberal), quiçá picareta, das narrativas do movimento negro em que se apaga grosseiramente a história dos movimentos antirracistas de tal modo que ser negro de esquerda é considerado, se não, quase, uma heresia contra a “nação”, o “nacionalismo africano” ou o “autêntico sangue preto”.
Sobre a “polêmica” com que iniciei este texto, gostaria de firmar a posição que: nem o antifascismo, nem o antirracismo são suficientes por eles mesmos – e não digo isso para pôr “panos quentes” ou “passar pano” em qualquer um dos movimentos, apelando para uma “justa medida”-, porque eles, quando independentes, são como ordenadas do pensamento sem as suas abscissas, isto é, um espectro político amplo demais em que não conseguimos nos localizar por faltarem outros referenciais. Somente na disputa de interesses que podemos nos localizar dentro desses espectros. Não há essências aqui, mas “sujeitos” disputando bandeiras de tal forma que não é nada absurdo vermos antifascistas racistas, assim como podemos encontrar antirracistas fascistas – e a história da luta antirracista no Brasil não nos deixa mentir, pois não podemos esquecer que tivemos um movimento negro integralista em “terras canarinhas” na década de 1930.
É chegada a hora de abandonarmos/desencantarmo-nos das premissas metafísicas e maniqueístas da política e vermos que nem o fascismo, nem o racismo são anomalias, monstruosidades, bestialidades, diabruras ou desumanidades, mas respostas politicamente plausíveis dos seres humanos e que, enquanto atos do humano e demasiado humano, somente com outras atitudes humanas – e com a solidariedade/afinidades das ações humanas de resistência a todo tipo de exploração, e de defesa à vida libertária – poderemos combatê-los na prática política.
Sim, dias melhores virão, mas somente com muita disputa e enfrentamento e, se e somente se, a luta pela criação do poder popular for afinada à grande rede de pautas antirracistas, antifascistas, antimachistas, anticapitalistas e revolucionárias.
All Power to the people!
Ygor Pena, o autor do texto, é militante negro formado em filosofia pela UFRJ, mestrando na linha de pesquisa de gênero, raça e colonialidade do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF) da UFRJ e integrante do grupo de pesquisa CPEL (Coletivo de Pesquisas e Estudos Libertários). Originalmente, o texto foi publicado aqui.
A foto é do Movimento de Organização de Base – RJ