O estado de exceção nas periferias de Porto Alegre: De boca em boca, dir. Wagner Abreu (2017)

Um ato em uma periferia de Porto Alegre contra a violência policial abre o filme e dá o tom da narrativa. A reclamação gira em torno, na maioria dos casos, do abuso de poder da Brigada Militar. “Não respeitam ninguém, nem trabalhador.” ou “As crianças tem medo de sair na rua quando eles estão aqui.” são frases ouvidas nessa primeira cena do filme e refletem a constante tensão que é viver em zonas afastadas do centro onde a polícia faz o que bem entende, com o respaldo do Estado, mídia e da burguesia alienada. Alguns poucos moradores, no entanto, comentam de certa potencialidade hipotética da polícia servir à comunidade, à população, prestando segurança e não o contrário. Como a polícia é a violência legitimada do Estado e foi feita para repimir, a grande maioria que fala no filme já contrapõe o dito antes, dizendo que a única coisa que a Brigada faz é aterrorizar todas e todos que vivem nas comunidades.

O longa tem vários acertos, e o primeiro é a tentativa bem sucedida de inverter a narrativa hegemônica sobre a vida no tráfico e as razões pelas quais se ingressa nela. O tom de caminho, de trajeto, que é construído ao longo do filme tem como base a realidade dos depoimentos colhidos nas bocas de fumo de três partes de Porto Alegre: zonas leste, norte e sul. O diretor conta que em alguns lugares foi difícil o acesso, e que mesmo depois de conseguir, muitos dos entrevistados se mostravam com receio de serem gravados e tapavam-se com roupas na cara.

Ao fazer esse movimento, dá protagonismo àqueles que historicamente são oprimidos na sociedade: moradores de periferia, principalmente negros (quase não há mulheres no longa). Essa realidade cíclica, sempre circular, é unânime nos depoimentos. Alguns falam em gerações no crime, o que significa uma opressão contínua do Estado – há muito tempo que essas histórias são silenciadas. Mostrar o outro lado, como fez muito bem Wagner Abreu, é o passo central para entendermos de fato como os mecanismos de opressão funcionam e se materializam. Os governos negam direitos básicos; a educação basicamente não existe (já que nunca é prioridade); a sociedade cultiva o racismo há séculos e partir disso a falta de oportunidades aumenta (razão também corriqueira para a entrada no tráfico, segundo a maioria dos entrevistados); dão à polícia o direito de fazer o que quiser nas periferias – abusos de autoridade, assassinatos, corrupção; tudo isso leva a um só caminho àqueles jovens, e esse violência, plantada pela polícia e pelo Estado, volta para a sociedade. A solução sempre errada e distorcida, vindo de cima, é a construção de presídios (o Central é nome presente a todo instante no filme). Assim, perpetua-se a circularidade da violência em vez de resolvê-la.

A partir do parágrafo acima é possível estabelecer relações facilmente com as músicas do Racionais MC’s (que parece ser homenageado pela fonte de letra utilizada na abertura do filme). Me vem à cabeça “Mágico de Oz” através do versos “(…) Ah, a polícia sempre dá o mal / Exemplo, lava minha rua de sangue, leva o / Ódio pra dentro (…)” e, quanto à circularidade da vida no crime e uma espécie de imobilidade ao tentar sair (na música, não especificamente do tráfico de drogas), “To ouvindo alguém me chamar”, quando o narrador reconhece a arma que o mata como aquela que ele tinha dado ao seu amigo Guina. Além do Racionais, dialogam com muita propriedade Branco sai, preto fica, filme de Adirley Queirós e Capão Pecado, romance de Ferréz.

O discurso é basicamente todo de jovens em torno dos 20 anos que estão entrando ou já estão no tráfico de drogas. Há, no entanto, dois momentos em que a palavra é dada a vereadores: um do PMDB e outro do PDT (que também é delegado civil). O primeiro escancara a negligência dos políticos com as periferias. Diz mais ou menos assim: “Quando você planta laranjas, vai lá em determinada época colher. Com política é a mesma coisa: na época das eleições é claro que se aparece mais.” Não é preciso falar muito para expor o ridículo de sua fala e as consequências que esta tem na vida de milhares de pessoas que vivem nas comunidades sem direitos básicos e em constante estado de exceção policial. Além disso, chega a mencionar que o que resolve as desigualdades é colocar todos no quartel (o que provocou risos na sessão em que assisti ao filme). Já o outro entrevistado, embora delegado e vereador, comenta saídas óbvias, mas que entretanto não são executadas: ocupação dos espaços públicos com áreas de lazer, praças, quadras etc., e investimento em educação a longo prazo.

Tecnicamente o filme é bem precário. Som às vezes inaudível pelo vazamento ou má captação e visualmente (principalmente cenas com pouca luz) ruim. Isso é um indício da precariedade que é fazer um filme totalmente independente, com caráter questionador e combativo no Brasil, dominado pela indústria cultural, no cinema representada pela Globo Filmes. Isso engrandece o filme, o torna ainda mais interessante porque representa a vontade convicta de mostrar uma outra narrativa contrária à hegemonia mostrada na grande mídia, na qual muitas vezes completa o discurso de “bandido bom é bandido morto”. Tudo isso com pouquíssima grana.

Filmado em 2016, o filme tem sido exibido em alguns lugares de Porto Alegre com sessões gratuitas. Passou pela Cinemateca Capitólio, Casa de Cultura Mário Quintana, teve exibição no Morro Santana (onde mora o diretor) e, segundo ele, está disposto a exibir onde o convidarem. É admirável a vontade e, principalmente, o resultado do projeto (que ao que tudo indica terá uma continuação). Não é fácil desconstruir o discurso conservador e racista que hoje domina nossa sociedade, mas De boca em boca se coloca como um forte avanço a essa luta.

Rodrigo Mendes

2 comments

  1. Ótima abordagem, gostariamos de um contato para exibição em formato de cine debate nos Quilombos Urbanos de POA.

    1. Onir, desculpa a demora, o telefone do Wagner é 997066823.

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