Gosto muito do diretor japonês Hayao Miyazaki, criador da obra-prima A viagem de Chihiro – que merece um texto à parte – e de outros belos filmes, como Castelo Animado, Meu amigo Totoro e Nausicaä do Vale do Vento. Este texto comentará brevemente este último, que é o segundo longa da carreira de Miyazaki (o filme é de 1984) e que já propõe alguns temas e jeitos de narrar que estarão nos outros citados, incluso aí A viagem de Chihiro (2001).
Recentemente falamos de como os créditos e o tipo de letra usado para mostrar os nomes dos integrantes do filme são importante e compõe a estética dos filmes, tal como os exemplos Laranja Mecânica (1971) e A vida invisível (2019). Em Nausicaä vemos uma investida de Miyazaki nessa parte, o letreiro inicial, para antecipar elementos do filme, contando a história da lenda e profecia a qual estava destinado o povo do Vale do Vento. Um recurso chamado de maneira pomposa de anteccipatio, isto é, uma antecipação, um artifício narrativo para contar a história. Isso significa que a investida nessa parte corresponde ao todo da obra, tem função narrativa, não está lá como enfeite. Isso me lembra de outro anteccipatio interessantíssimo utilizado em O poderoso chefão (1972), mas não nos créditos, este se encontra na cena mesmo a cargo da direção de arte: antes de Luca Brasi entrar em um restaurante, Coppola filme a porta deste com uma decoração de peixes – depois descobrimos que os peixes mortos e frescos enviados a Sonny Corleone faziam referência à gíria mafiosa de “comida de peixe”, que significa morte, neste caso, a morte de Luca Brasi. Um elemento visual constitutivo do cenário, portanto organizado pela direção de arte do filme, antecipa um elemento do enredo de maneira muito criativa.
Nausicaä trata de uma sociedade vítima da industrialização desmedida do capitalismo: “1000 anos após o colapso da gigante civilização industrial”. Automaticamente isso pode nos referir a Chaplin em Tempos modernos, que tematiza ironicamente os processos de produção alienantes da sociedade industrial norte-americana da primeira metade do século 20. Mas o filme de Miyazaki – que é uma animação, não custa lembrar – trabalha a partir de outra ótica: a da fantasia. Parece uma obra fruto do lirismo moderno, digamos, em que vemos a passagem, ou transfiguração da realidade social do século 20 (industrialização desmedida, sociedade nuclear, etc.) em forma estética, mas cuja estetização não se dá por uma atitude realista, se não por alegoria. O enredo mostra a queda da civilização humana após um colapso no planeta, que devasta não só a natureza, como também os seres humanos, criando assim uma imensa floresta de fungos venenosos e ar poluído, a Fukai. Aqui uma das tensões constitutivas do filme, no plano do conteúdo, que é Fukai x Humanidade, grosso modo. É possível acrescenta aqui outra tensão, Natureza x Fukai, símbolo da poluição, da corrupção, do caos da industrialização. Poderíamos mencionar outra, que é de forma: pauta realista x forma fantástica (além de ser animação, que tende a formas não realistas). Sendo a lenda contada no filme, há um deus soldado destruidor. Embora eu não tenha leituras da Bíblia, penso em um mito de fundação daquela nação em algo como o que o dilúvio significa para a Bíblia.
A personagem principal é uma jovem menina, Nausicaä, que luta para defender seu povo do Vale do Vento de interesses belicosos de impérios vizinhos. Alegoria com o imperialismo dos grandes centros do capitalismo, principalmente EUA pelo andar da hora (o filme é de 1984, finalzinho da Guerra Fria – lembrando também que é um filme japonês, país que saiu perdedor e devastado pela Segunda Guerra). O fato de ser uma jovem heroína chama a atenção por inverter certos papeis de gênero comuns ao cinema, e chama mais atenção ainda pois é algo recorrente na filmografia de Miyazaki, cujo centro das narrativas volta e meia reside em jovens meninas, como é o caso de Totoro e mais ainda em Chihiro.
Comum também aos filmes do diretor, a capacidade de inventar criaturas fantásticas é impressionante. Aqui o principal nesse quesito é o Ohmu, uma carcaça de animal que anda vorazmente atrás das pessoas que cruzam seu caminho. Essa espécie de hipertrofia de um animal causada pelos efeitos danosos da industrialização e do colapso causado por ela é como um elefante branco no filme – às vezes sua carcaça mesmo – sugerindo que ele é o personagem que materializa no enredo os efeitos da industrialização, inclusive no que tange a sua violência. Ele, por outro lado, tem poderes psíquicos que suscitam memórias nas pessoas que o cercam, o que poderia ser interpretado na linha do que disse antes: os Ohmus como indícios da violência da industrialização à Natureza.
Como lhe é peculiar, o aceno ao mundo real através da sua ficção nem um pouco realista, mas totalmente realista, é uma marca no cinema de Miyazaki, e já o era nos anos 80. Não é o melhor filme do diretor – dentre os que vi –, mas sem dúvida é um filme interessante como tentativa de encarar o futuro do nosso mundo, uma sociedade pós-industrial, um tanto apocalíptica, a qual caminhamos a passos largos.
Rodrigo Mendes