Modernização fracassada e manipulação dos sistemas de crenças: a luta por corações e mentes do Brasil

1º de maio de 2018, Bruno Lima Rocha

Ideologia importa, e muito. E sentimento religioso não é alienação, e menos ainda o idealismo ou a dimensão utópica da luta são “ruins”. Tampouco “dilemas de falsa consciência”. Muito pelo contrário. É na resultante entre câmbio ideológico, alteração nas relações sociais e instituições coletivamente controladas que residem chances reais de mudanças de profundas. A complexidade do tema e a observação do que ocorre em nosso país implica em desconstruir alguns mitos das “modernizações”.

Existe um sistema de crenças paracientífico, eu diria que afirma alguns equívocos.  Um destes é a noção de que “as condições de existência determinam as condições de consciência”. Logo, dentro dos preceitos quadrados ainda de linha soviética (obs. Lembrando que a União “Soviética” era tudo menos governada pelo poder dos conselhos de trabalhadores e soldados), existiria esta fantasia sociológica da “classe em si” e a “classe para si”, com vanguardas auto-eleitas dentro da “razão universal”. Interpreto esta visão tacanha de teoria da história algo que rivaliza com o sentimento religioso, mas através de um instrumental “científico”. Nem toda visão modernizante é tributária do modelo stalinista, mas houve similitude em escala global.

No período da Guerra Fria, para além do bloco do Leste Europeu – taxada como “cortina de ferro” à época – as teorias da modernização governaram corações e mentes dentro da Era da economia planificada e dos trinta anos gloriosos do capitalismo. Como as mentalidades dos tomadores de decisão operam a partir de determinações, logo, seria determinante a mobilidade social dentro de sociedades urbanas, com acesso ao estudo, crédito de consumo, moradia, transporte integrado e outras características da modernidade. Parece que tal estrutura de mentalidades operou durante a chamada Era Lula, onde houve uma massiva promoção social da base de nossa sociedade, mas sem mudança estruturante na significação derivada desta mesma mobilidade. Traduzindo: a maioria não processou a informação como sendo fruto de um “governo progressista através de um pacto de classes”.

Logo, a quase reserva eleitoral não rendeu o que deveria? Por quê? Uma das causas evidentes foi à negação do populismo, ou seja, negar-se a organizar uma parcela – de 5 a 10% por exemplo – dos beneficiados das políticas públicas como garantia de permanência no Poder Executivo através do voto indireto, fazendo assim o bloqueio de fato do sistema político. Rasgaram o manual e por duas vezes; não podia dar em outra coisa. Enquanto isso, no andar debaixo, onde a sociedade pós-colonial realmente existe, vampirizavam os feitos do lulismo.

Posso e devo ser questionado.  Porque isso de novo? Ora, mesmo em um momento de necessária unidade, é necessário um debate franco,  sem sectarismo, mas sem escamotear nada. Não houve um pingo de autocrítica, por consequência, não há reflexão densa e assim tudo pode se repetir. Especificamente na parte que me toca neste latifúndio teórico-político, fico sem compreender a direita mais rançosa. Fizeram e fazem uma gritaria de “revolução cultural” de base gramsciana. Tem gente ainda mais enlouquecida afirmando “mais Mises e menos Paulo Freire”. Apostasias neoliberais à parte, o que menos tivemos na Era Lulista foi Gramsci e Freire, assim como tudo o que o lulismo não fez foi o “populismo latino-americano”. Se tivesse feito, não teria caído, ou ao menos, não tão facilmente.

Alguns dados dos governos de Lula (2003 e 2010) e o período com Dilma na Presidência (2011-2016) indicam a mobilidade social de cerca de 44 milhões de brasileiros. Outros números apontam que o total de pessoas atingidas por alguma política pública como Minha Casa Minha Vida; Bolsa Família; Pronatec; Prouni; Luz para Todos; IPI Reduzido; Vale Reforma; Vale Cultura; Linha Branca; Linha Cinza, dentre outros, chegaria a mais de 62 milhões. É fato, um quarto da cidadania do país mais desigual do mundo industrializado e mais violento do planeta, foi atingida por ações de governo. Logo, se tanta gente teve uma melhoria de suas condições matérias de vida, era de esperar uma mudança automática na perspectiva ideológica e um alinhamento ao projeto de país então vigente. Certo? Absolutamente errado.

A materialidade concreta e o cotidiano incidem sobre nossa percepção do mundo da vida, mas isso por si não altera mentalidades e menos ainda transforma consciências. Para dar significado às políticas públicas, o governo deposto deveria querer fazer justo o que nunca quis: organizar a base da pirâmide social e traduzir as “melhoras” como conquistas coletivas, acima das capacidades individuais. Não que os indivíduos, as mulheres e homens do Brasil, não sejam meritórios de suas vidas melhorarem, mas a ignorância política, somada à manipulação grosseira da fé alheia (blasfemando as palavras e obras do Cristo todo o tempo) e o culto ao individualismo estadunidense, fez da conquista material uma derrota ideológica. A consequência é o desencanto quando o modelo rui pela também derrota ideológica de Dilma no segundo mandato, governando com Joaquim Levy e cumprindo os desígnios dos especuladores e financistas.

Romper o cerco das bolhas de internet e o desencanto somado à sobrevivência durante o terceiro ano de recessão consecutivo não é tarefa fácil, mas pode servir como lição histórica. A traumática experiência dos assassinatos de Marielle Franco e Ânderson Gomes no Rio de Janeiro demonstrou que é possível somar a indignação coletiva, com a prática de um ecumenismo de libertação e exigindo do aparelho de Estado respostas para ausência de direitos. Mas a indignação precisa ser canalizada para algo permanente, tanto no esforço da unidade possível através das lutas sociais, como no diálogo entre os sistemas de crenças, isolando os manipuladores e atraindo para uma agenda construtiva e cidadã os manipulados.

A luta social brasileira é diária, e esta opera de forma independente do calendário eleitoral. Mais importante do que eleger uma candidatura, é ter condições de força para reverter leis e medidas absurdas tomadas pelo governo ilegítimo. E isso já no primeiro semestre de 2019. Ao lado da organização de base – imprescindível e prioritária – esta força social precisa ser transmitida como potência ideológica, afirmando a vida e a sociedade por cima da vilania criminosa dos que querem os recursos do Estado apenas para a camada dominante da população. A luta também é – e sempre foi – por corações e mentes.

Bruno Lima Rocha é cientista político, professor de relações internacionais e de jornalismo

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