Por S., feminista, militante da Resistência Popular Sindical
Nos dias 03 e 06 de agosto de 2018, o ABORTO volta ao Supremo Tribunal Federal. O tema será debatido em duas audiências públicas convocadas pela ministra Rosa Weber, relatora do processo. Isso faz parte da ADPF 442 (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental), que pede a exclusão do Código Penal dos artigos 124 e 126, que definem como crime a interrupção da gravidez para a mulher e para quem a ajudar a abortar. Na prática, isso significa o aborto não ser considerado crime até a 12º semana de gestação.
O aborto[1] é um tema bastante difícil de tratar socialmente porque foi, através de inúmeros mecanismos, relegado ao campo do silêncio e da clandestinidade. As instituições burguesas se ocuparam de criar uma fronteira tênue e falaciosa entre ideias de infanticídio e aborto, que sempre desconsideram as motivações pessoais e necessidades das mulheres e que ainda coloca o tema sob ótica médica e penal. A partir de meados do século XX, alguns processos tiveram um papel fundamental na forma como as mulheres podem dispor do próprio corpo. O aumento de partos em hospitais e a pílula anticoncepcional tiveram impactos nos personagens autorizados ou não dos cuidados reprodutivos, por exemplo. Inclusive tomando de nós o protagonismo e direitos de escolha sobre a concepção, o parto e amamentação. Nesse processo, se a contracepção passa a ser discutida como questão biomédica e de política pública ligada a planejamento familiar, o aborto permanece no campo da criminalidade e da moral religiosa.
No Brasil, entre os anos 60 e 80 começaram a surgir na mídia a divulgação de mortes em consequência de abortamento em clínicas clandestinas. Na abertura política, durante a Constituinte, grupos de mulheres organizadas tentaram incluir a questão no texto sem muito êxito. O que foi garantido naquele momento foi somente o planejamento familiar e o não reconhecimento da vida desde a concepção. As mudanças (muito lentas) na trilha legislativa referente às mulheres não chegam nessa questão, pois é um tema que até hoje não se alterou no Código Penal. Nos anos 90 um novo dado salta aos olhos: uma “queda” relativa na mortalidade por abortamento decorrente do uso do misoprostol[2], que indica o uso de um método mais seguro do que outros comumente usados pelas mulheres. Ainda assim, os índices de morte por aborto clandestino são imensos. E apesar das mortes e de ser um assunto grave de saúde pública, a primeira Pesquisa Nacional do Aborto só vai ser realizada no ano de 2010.
É preciso ter claro que esse tema é caro e sensível aos conservadores porque afeta diretamente suas estruturas como a propriedade privada (o que inclui o corpo das mulheres), herança e linhagem patriarcal, a honra masculina ligada ao controle da sexualidade da mulher (que, portanto, não pode ser expressada livremente) e de um papel social da mulher que é o da maternidade compulsória[3]. Sobre esse ponto, vale lembrar um caso emblemático no Brasil que é o de uma clínica no Mato Grosso do Sul que foi denunciada em 2007. A dona da clínica se suicidou e mais de 10 mil mulheres foram denunciadas na época. Essas mulheres foram obrigadas pelo juiz a escolher entre a cadeia ou realizar trabalhos comunitários em creches e escolas – um recado claro e cruel sobre seu lugar “natural” e obrigatório de maternidade. Nenhuma mulher deve ser obrigada pelo estado ou por qualquer pessoa a ser mãe contra sua vontade.
Precisamos pensar que o debate do aborto não é somente sobre a interrupção de uma gravidez, mas possui uma infinidade de temas intrinsecamente relacionados: sexualidade, maternidade, direitos sexuais e direitos reprodutivos, violências contra a mulher, controle dos corpos pelo capitalismo e pelo estado, direito à creche pública, licença maternidade e paternidade, intervalos de amamentação, controle reprodutivo, jornada de trabalho, desigualdade salarial das mulheres, esterilização involuntária, políticas demográficas, o elemento moral da religião, mídia e opinião pública, violência obstétrica, sobrecarga de cuidados, amamentação, saúde coletiva, heteronormatividade e divisão sexual do trabalho, etc…
E ainda uma outra questão fundamental que é masculina: o papel dos homens, a recusa no uso de preservativo, responsabilidade na contracepção, abandono parental. O debate do aborto desperta nos homens uma tranquilidade em opinar com propriedade sobre os corpos das mulheres, mas não há nada sendo dito sobre as milhões de crianças sem o nome do pai no registro, que crescem com essa ausência e tendo as mães como chefes de família. Nada sendo debatido sobre masculinidades, questões reprodutivas referentes ao homem e cuidado paterno das crianças. É tarefa urgente dos homens que apoiam a autonomia das mulheres e que se pensam parceiros da luta pela igualdade de gênero a de impulsionar esse debate.
Temos que considerar também que o aborto não é apenas uma questão moralizante, mas uma questão fundamental no funcionamento do sistema capitalista. Proibição do aborto e políticas demográficas são formas de regular a força de trabalho. Não podemos esquecer do estupro colonial de mulheres negras e indígenas para gerar “mão-de-obra”, das políticas de imigração em momentos de envelhecimento da população, políticas de incentivo ao aumento do número de filhos em países com baixas taxas de natalidade ou, em contrapartida, momentos de esterilização forçada em contextos de superpopulação. A maternidade compulsória nos torna uma espécie de parideiras do capital, pois fazemos o trabalho reprodutivo e o trabalho não remunerado (doméstico). Para o sistema, isso significa ter metade da humanidade trabalhando de graça e gerando mais força de trabalho.
OFENSIVA CONSERVADORA, AJUSTE E REPRESSÃO
No Brasil uma série de ataques atingem a população como um todo e a nós mulheres de forma ainda mais violenta. Estamos resistindo às consequências da EC 95 (que congela os investimentos públicos em áreas fundamentais como saúde e educação), a Reforma Trabalhista, Intervenção Militar e aumento da violência de estado, o nefasto projeto da “Escola sem Partido” (que quer também combater as políticas e a educação para igualdade de gênero e sexualidade, a falácia da “ideologia de gênero”). Um contexto de redução de investimentos do estado em direitos sociais e maior controle repressivo.
Nesse quadro, os que se identificam como “pró-vida” se ocupam de criminalizar as mulheres. Ora, com o desmonte dos serviços públicos, com o abandono dos pais, com a violência que sofremos por sermos mulheres, como é a experiência de criar um filho sem creche, sem pai, sem escola, sem saúde, com o aumento absurdo da carestia de vida?
Simone de Beauvoir disse que basta uma crise para os direitos das mulheres serem questionados. Não que tenhamos muitos direitos num mundo capitalista e patriarcal, nem os tivemos aos longo da história. Mas de fato há momentos mais dramáticos. Para nós, grandes retrocessos são visíveis no Brasil desde 2013, quando a então presidenta Dilma Rousseff se compromete com setores religiosos e nomeia o pastor evangélico Marco Feliciano para Comissão de Direitos Humanos.
A partir de então, uma série de projetos de lei que atacam diretamente a autonomia dos nossos corpos se intensificaram e nos ameaçam. Por exemplo, atuam para modificar o atendimento às vítimas de violência sexual, definir a prisão e cassação para médicos que fizerem aborto, transformar aborto em crime hediondo, estabelecer pena de detenção para quem realizar pesquisa com célula-tronco, conceder pensão à mãe que mantenha a criança nascida de gravidez decorrente de estupro (que ficou popularmente conhecido como “bolsa-estupro”), aumentar as penas para prática de aborto, estabelecer penas para quem “causar culposamente a morte de nascituro”; “anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto”, “fazer publicamente apologia do aborto ou de quem o praticou, ou incitar publicamente a sua prática”, qualificar aborto como tortura, dificultar ou proibir a venda da pílula do dia seguinte, retirar o direito ao aborto em alguns dos casos previstos (como risco de vida pra mãe, por exemplo), entre outros. O conjunto de leis cruéis que miram nossos corpos e autonomias é vasto e perverso.
Em novembro de 2017 uma Comissão Especial da Câmara aprovou a PEC 181, conhecida como Cavalo de Troia. Assim conhecida porque junto ao texto que ampliaria um direito (a ampliação da licença-maternidade), incluíram uma mudança no texto constitucional para impor o entendimento da vida desde a concepção, abrindo uma brecha para condenar as mulheres que abortam mesmo nos casos hoje permitidos. E nós recebemos como facadas as celebrações sádicas daqueles 18 homens que votaram nossa morte. Esse conjunto demonstra a misoginia presente na sociedade. Quando Dilma, mulher, ex-guerrilheira, de “esquerda”, barganha nossos corpos com a bancada evangélica, quando esse congresso de homens que odeiam as mulheres nos atinge, fica evidente que as instituições burguesas não passam de disputas de poder, e que não é por meio delas que conquistaremos liberdades.
“Se alguém tiver que morrer, que seja a mulher”. “Uma mulher abortista não é mulher”. “Quem mandou abrir as pernas”. “Quem faz tem que ir pra cadeia”. “Assassinas de inocentes”. “Condenar a morte a mãe, que com certeza vai engravidar trocentas vezes mais ninguém apoia né”. “Estereliza antes de engravidar”. “Que o útero das mulheres seja um templo da vida, e não um cemitério”. “Não quer dá pra adoção”. “Não quer engravidar não transe”. Esses são comentários retirados dos vídeos de transmissão da audiência do dia 03, mas são falas comuns entre os contrários à legalização. Isso é misoginia. O engajamento “pró-vida” é vil e mau caráter. Valem-se de campanhas apelativas e mentirosas, difundindo dados falsos, imagens sensacionalistas de fetos incompatíveis com o estágio de gravidez recomendado para interrupção, imagens ensanguentadas de uma suposta carnificina que não existe na realidade. A única matança real é a de mulheres proibidas e criminalizadas que abortam na clandestinidade.
Existe atualmente uma Frente Parlamentar em Defesa da Vida, composta pela Frente Parlamentar Católica mais a Frente Parlamentar Evangélica, onde a chamada Bancada da Bíblia busca estratégias para dominar o debate do aborto. Essa frente chamada “pró-vida” realizou um seminário em maio na Câmara para discutir a ADPF 442. Na ocasião, praticamente só chamou religiosos, numa manobra já conhecida sua em espaços de discussão para monopolizar o debate. Estão com propostas de constituir Casas Pró-Vida, (nos moldes de casas sustentadas por instituições religiosas ) financiadas pelo Ministério da Saúde, ao invés da legalização. O congresso conservador juntamente com outras instituições religiosas e civis acusam a luta pelo aborto de defender uma “cultura da morte”. Contudo, são esses grupos que atuam conjuntamente numa agenda regressiva de ataque aos direitos e violências. Querem impedir educação sexual e para a igualdade de gênero, agudizam as desigualdades sociais, defendem mais armamento e redução da maioridade penal. Porque bandido bom é bandido morto. Deixar nascer para o sistema explorar e matar.
O que acontece agora no STF é também uma briga entre legislativo e judiciário. O ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), que também propôs o 3º caso aprovado em 2012 (anencefalia) é quem propõe junto com o Psol a ADPF no STF. Como a agenda do aborto não emplaca no congresso, comandado por homens brancos e de maioria conservadora que interdita os temas incompatíveis com o que entendem por “moral”, essa foi uma estratégia de jogar a pauta para o judiciário. Ainda que não nos queiramos presas ou mortas, e que lutemos há muito tempo pela descriminalização e legalização, é inadmissível ver nossos corpos num cabo de guerra das instituições de dominação do sistema.
ABORTO LEGAL JÁ!
A proibição não impede que ele aconteça. A maioria dos países ditos desenvolvidos legalizou o aborto. No mundo todo, a legislação mais restritiva é na América Latina e na África. Onde mais se pune e persegue mulheres também é onde temos as taxas mais altas de abortos inseguros. Na América é permitido na Guiana Francesa, Guiana, Cuba e Uruguai. Localmente na Cidade do México. Em Porto Rico é permitido mas somente em clínicas privadas, a saúde pública não oferece. A proibição é total na República Dominicana, El Salvador, Nicarágua, Honduras, Haiti e Suriname. Nos demais países o aborto é permitido em alguns casos, com legislação bem semelhante ao Brasil.
No nosso caso, o Código Penal qualifica o aborto como crime desde sua versão republicana e em 1940 estabeleceu a permissão nos casos de estupro e risco de vida. Somente em 2012 é incluído o terceiro caso, a anencefalia. Estudos mostram que 1 a cada 5 mulheres já fez ao menos um aborto. Que cerca de 7 milhões de mulheres são internadas a cada ano em países em desenvolvimento. Que o SUS gasta milhões em internações por complicações decorrentes de aborto clandestino. No Brasil, ocorre a média de 1 morte a cada dois dias em abortos inseguros e a realização de quase um milhão de abortos por ano. Também mostram a redução do número de abortos e da mortalidade materna nos países onde é legalizado.
Nós mulheres temos estado na linha de frente em diversas lutas sociais nos últimos anos. Em 2015 construímos as Mobilizações “Fora Cunha”. Em 2016 as polonesas protagonizaram uma grande luta pelo direito ao aborto legal. Em maio de 2018, a Irlanda decidiu em referendo uma mudança constitucional para legalizar o aborto. O Chile pautou o tema nas ocupações das mulheres contra a violência. Na sangrenta Nicarágua as feministas estão na linha de frente junto com os estudantes, resistindo à repressão de Ortega e Murillo, que retiraram das mulheres o direito ao aborto. Em junho a Câmara dos Deputados da Argentina aprovou a legalização até a 14º semana, a votação segue no Senado no próximo dia 8. E a onda verde das hermanas têm espalhado ventos de rebeldia e reacendido essa luta em outros países da América Latina. O Brasil têm realizado diversas atividades e manifestações pela legalização. Só para citar alguns exemplos.
Esse protagonismo também nos coloca uma situação de forte repressão e perseguição aos movimentos de mulheres. Redução de políticas públicas, fechamento de instituições de acolhimento, propaganda de ódio contra as feministas, substituição de programas de educação sexual por programas de apoio à “família”, limitação de acesso a contraceptivos, repressão nas manifestações, ataques públicos contra ativistas, represália (identificação, multas, invasão das casas pela polícia), estupros corretivos, ameaças de morte, crimes de ódio, assassinatos. Todos exemplos do recrudescimento da perseguição do estado e ataques de conservadores.
O aborto é uma questão que TODAS as mulheres compartilhamos. Nos afeta a todas, somos todas clandestinas. É sabido que pobres, ricas, negras, brancas, religiosas, atéias, mulheres férteis de qualquer idade, todas abortamos. Mas as consequências da proibição e criminalização são resultado de um estado racista e feminicida que criminaliza a pobreza e atinge diretamente e de forma mais violenta as mulheres negras (que tem 3 vezes mais chances de morrer por aborto clandestino), pobres e periféricas da classe trabalhadora. É preciso lembrar que as audiências do STF tratam da DESCRIMINALIZAÇÃO, o que seria sim um passo à frente. Mas isso não pode substituir nem ofuscar a luta pela LEGALIZAÇÃO[4]. Entender que as mulheres enfrentam de forma diferente esse problema significa refletir sobre perspectivas de raça e classe. Não basta descriminalizar e legalizar. É preciso saúde pública de qualidade. Construir políticas de educação e saúde sexual eficazes. É preciso que haja acolhimento e respeito às liberdades, direito ao nosso corpo e à individuação política. Não somos depositárias de fetos, reprodutoras. Somos mulheres e devemos decidir sobre nossos corpos e nossas vidas.
Com o impulso do debate pelas mulheres em luta é importante reforçar a necessidade de auto-organização e autonomia das mulheres. Na luta e na vida. É preciso compreender que a nossa luta não é legislativa. Ela deve ser NAS RUAS. Precisamos nos mobilizar com independência de governos, partidos, igreja. É preciso construir uma luta com ação direta contra estado, capitalismo e patriarcado. Fazer ouvir nossa voz.
Há poucos dias atrás, perdemos Ingriane. Mais uma que não pudemos salvar, mais uma assassinada pelo estado que criminaliza. Ingriane. Mãe de 2 filhos. 30 anos. Trabalhadora doméstica. Mulher negra e periférica. Morreu de infecção generalizada, provocada pela agonia de um talo de mamona enfiado em suas entranhas. Na agonia da clandestinidade. Do desrespeito. Do desespero. Da solidão. Do medo. Ingriane poderia estar viva, mas morreu torturada pelo estado patriarcal, racista e feminicida.
É preciso dar um basta. Aborto tem que ser questão de cuidado, acolhimento, prevenção. Porque vivas nos queremos.
Pelo direito de autonomia e autogestão dos nossos corpos.
Educação sexual para prevenir, contracepção para não engravidar, aborto legal, seguro e gratuito para não morrer.
Nem presa, nem morta.
É pela vida das mulheres.
ABORTO LEGAL JÁ!
[1] Interrupção de uma gravidez que pode ocorrer de forma espontânea ou ser provocada. Quando induzido, pode ser feito por via farmacológica (com uso de remédio) ou cirúrgica.
[2] Medicamento que provoca expulsão do feto e tem o nome comercial mais conhecido de Cytotec.
[3] De forma bem superficial, um aspecto da dominação dos homens sobre as mulheres através da reprodução. A ideia de que as mulheres têm um papel social natural de ter filhos, que só são seres humanos completos quando se tornam mães, que têm mais capacidade de cuidar de crianças, o impedimento de interromper uma gravidez, entre outros aspectos.
[4] Descriminalizar não é o mesmo que legalizar. Descriminalizar significa que nenhuma mulher que realizar aborto será indiciada criminalmente. Legalizar significa a definição por meio de leis ou medidas provisórias de políticas públicas para prevenção e realização do procedimento.