Hoje, 18 de Maio, se marca nacionalmente o dia de luta antimanicomial no Brasil. Um dia em que se faz memória ao trabalho árduo e sofrido de trabalhadoras e usuárias, de militantes e profissionais de saúde em todo canto do país que dedicaram suas vidas à construção de um mundo sem manicômios, de uma lógica de cuidado em liberdade.
Nesse enclausurante 2020, em que o isolamento social divide espaço com o surrealismo político na fileira dos acontecimentos enlouquecedores, nunca esteve tão urgente resgatar as batalhas e as conquistas de quem ousou cravar no tecido opressor do estado brasileiro um grito que carrega em si um mundo de proposições: manicômio nunca mais!
A Luta Antimanicomial do Brasil, vale dizer, ao mesmo tempo em que se insere em um processo internacional de crítica feroz ao encarceramento da loucura e ao instituto da psiquiatria como mediadora da vida e mantenedora dos sistemas de produção e opressão capitalistas, têm também características próprias, fundamentalmente brasileiras, tendo sido desenvolvida em um contexto específico no nosso país, carregando consigo marcas e atravessamentos que a esticam para além dos muros do manicômio ou da caixa da saúde mental.
Aqui, a reforma psiquiátrica foi, antes de mais nada, um enfrentamento à barbárie. E o processo de lutas que se travou e segue se travando no Brasil, por loucos e loucas, trabalhadoras e militantes, é um processo carregado e afogado em brasilidades.
Só foi possível fazer luta Antimanicomial no Brasil, da crítica à institucionalização da vida até a construção da maior política humanizada de cuidado em saúde mental do mundo porque tal luta se deu em um Brasil cuja classe trabalhadora se punha em pé, organizada para não apenas terminar de derrubar a ditadura, mas sonhar e tentar construir um país com outros futuros possíveis, em que Saúde fosse um direito de todos e dever do estado.
Assim, só houve reforma psiquiátrica porque houve reforma sanitária. A invenção do SUS, cuja defesa política concreta nunca foi mais urgente, foi o marco da invenção de uma rede de cuidado em saúde mental que se propunha a pôr abaixo os muros dos hospícios e jogar pra dentro da cidade a loucura que ela inventa.
A luta Antimanicomial, em um país como o Brasil, foi e segue sendo uma luta antirracista, já que o enclausuramento e o discurso da loucura foram, sempre, tal qual a balela do crime e das prisões, um artifício pra aperfeiçoar a máquina de moer carne preta e excluir (quando não chacinar) os pobres e o povo preto, os originários e as comunidades não-brancas em geral.
A luta Antimanicomial no Brasil foi e segue sendo uma luta feminista, já que o hospício sempre se inseriu no arsenal de instituições de controle dos corpos femininos e enclausurar a loucura e todos os transtornos das mulheres, foi sempre uma estratégia de afastar e se livrar dessas histéricas, nervosas e maníacas.
A luta antimanicomial, em um país assolado por desigualdades inacreditáveis, é uma luta por vida digna, na medida que expõe os hospícios como uma ameaça constante aos de baixo, um instrumento de aprisionamento e medicalização de quem não pode produzir sob o regime do capital, e propõe uma política de cuidado em liberdade, em comunidade, atravessada por lógicas libertárias e libertadoras de produzir atenção, sempre coletivas, sempre políticas, sempre no sentido de uma vida mais digna pro povo.
A luta antimanicomial foi e segue sendo mais uma trincheira no debate pela legalização de todas as drogas, que passa por inserir o consumo saudável e abusivo de substância entorpecentes (do açúcar à cocaína, do café ao tabaco) como escolha ética e política das pessoas, cientes de que prender não é tratar.
Por isso que a luta antimanicomial, que lembramos e atualizamos a cada 18/5, foi e continua sendo uma luta que precisa estar inserida na crítica e no combate a todas as prisões, precisa andar de braços dados com o abolicionismo penal e precisa encarar que cadeia, assim como hospício, não passa de uma desculpa do poder instituído pra nos prender, torturar e matar. Nasceram juntas e juntas precisam morrer pelas mãos de suas vítimas.
A luta antimanicomial no Brasil foi e segue sendo uma luta não apenas contra as prisões físicas, os hospícios e os choques elétricos, as torturas e as violações, tantas que nos fizeram ter nosso próprio holocausto brasileiro, mas também (principalmente, talvez), é uma luta contra a lógica que faz com que seja possível que se prendam loucos e loucas: o manicômio cientificista, a invenção da loucura, a psiquiatria e a medicalização da vida.
É só com a derrubada de tais lógicas que o Brasil e a américa latina se verão livres pra sempre das grades manicomiais e de todas as outras.
E essa derrubada, que não começou ontem e não pode terminar nunca, se desenvolve no entendimento de que o sistema de produção que vivemos é um eterno inventor de instituições de sequestro, violência e enclausuramento; de que é preciso encarar de frente esse passado, jogar no lixo da história essa noção de saúde e criar, no real, um jeito de cuidar em liberdade, de cuidar no território, de unir o olhar sobre a saúde mental com o olhar sobre os povos e sua relação com a produção e reprodução da vida. Por isso, a luta antimanicomial só pode ser (e é) uma luta contra o capitalismo.
A luta antimanicomial no Brasil e foi e continua sendo, às vezes avançando e as vezes se agarrando com unhas, dentes e corpos ao que já se conquistou.
São destruições de processos historicamente construídos; retrocessos em noções importantes sobre drogas e cuidado; é o desmonte na rede de atenção; é o fortalecimento de instituições anti científicas e da lógica manicomial e psiquiatrizante… Desde o golpe de 2016, portarias, leis, instruções e resoluções, decisões políticas e práticas de gestão, autorizadas ou executadas diretamente pelos governos nacionais, aliadas à emenda do teto de gastos e à lógica de cortar nos direitos para encher o bolso dos banqueiros com o nosso dinheiro, tem feito uma enxurrada de desastres nas políticas de atenção à saúde mental no Brasil.
Enquanto há igrejas e pilantras lucrando com a prisão e a medicalização da loucura e governos dedicados a destruir as conquistas da luta antimanicomial, há quem não arrede o pé das barricadas que o movimento de reforma (anti)psiquiátrica vem construindo há três décadas.
Com grande parte do país presa em casa, resgatar a histórica crítica ao enclausuramento e ao confinamento como práticas de cuidado, em 2020, é atualizar uma luta que nunca foi tão importante.
Não existe vida digna enquanto houver um hospício em pé. Não existe vida digna enquanto houver uma instituição religiosa lucrando com a “recuperação” de “viciados”. Não existe possibilidade de construir dignidade enquanto o desmonte da saúde seguir ameaçando e matando o povo, sobretudo o povo preto e pobre desse país.
São trinta anos de luta, muitos avanços ao redor do mundo, muita gente unindo as vozes e os gritos, as loucuras e as pinturas para baixar a bola dos entusiastas da tortura do hospício e seguir, de punho em pé, a dizer:
Prender não é tratar! manicômio nunca mais!
Texto de Opinião de Guilherme Ulema,
estudante de Psicologia,
militante da Resistência Popular de Porto Alegre