Lei dos flanelinhas cria desemprego e aumento da repressão

 

No dia 15 de janeiro o prefeito Nelson Marchezan sancionou a lei que proíbe o trabalho dos “flanelinhas”em Porto Alegre, profissão de guardador autônomo de veículos até então regulamentada pela Prefeitura. A Lei havia sido aprovada pela Câmara em novembro do ano passado, quando alguns setores da prefeitura começaram a fazer um cadastro dos flanelinhas com a promessa de “incluir” estas pessoas em programas de reinserção social.

 

O Repórter Popular foi as ruas um mês após a vigência da lei para saber a repercussão desta na vida das pessoas. Um dos entrevistados foi Thiago, que trabalha há 5 anos como guardador de veículos na cidade baixa e manifestou que está preocupado com a lei.

 

“Ah, eu acompanhei mais pela mídia né, mas fui lá na Câmara dos Vereadores. Eu tenho duas filhas né, tenho minha mulher, tenho minha casa […] Na verdade eu ganhei a minha casa, eu e a minha mulher, num programa que a gente entrou, Mais Dignidade, ficamos 1 ano e 2 meses esperando, daí saiu e seguida que saiu, aconteceu isso daí”.

 

Thiago e sua esposa viveram anos em situação de rua, hoje tentam reestruturar a vida; recebem Bolsa auxílio-moradia através do Programa Mais Dignidade e já são acompanhados pela assistência social do município há anos. Entretanto, Thiago demonstra que tais programas ofertados pela prefeitura, os quais vereadores e prefeito indicaram que seriam os “caminhos” para a “reinserção social” dos flanelinhas não dão conta da complexidade que é a falta de renda,  moradia e do desemprego, entre a parcela mais pobre da população.

 

Marino, 44 anos, ensino fundamental incompleto, trabalha há 22 anos (praticamente a metade da vida) como guardador de veículos na região central de Porto Alegre, se apresenta: “Eu aqui cuido carro, cuido rua, ajudo moradores”. Após a sanção da lei não tem ido trabalhar todos os dias, com receio de ser abordado pela guarda municipal e multado. Segue atuando porque é sua única fonte de renda, relata: “eu dependo daqui, né?!”. Marino ainda não buscou se cadastrar no SINE pois, além de não ter os documentos exigidos, na sua experiência “eu to aqui há 22 anos porque largava, largava currículo nas coisas…espera ser chamado, espera e nada e eu era juntado, tinha uma guriazinha, uma criança… mas aqui (na rua como guardador) eu me defendia, ganhava as coisas, aqui montei minha casa”.

 

Em contato com o SINE Municipal, fomos informados de que a Prefeitura estima que há 2.000 pessoas atuando como guardadores de veículos, dos quais 200 foram entrevistados. Nesta amostra, identificou-se que cerca de 80% tem ensino fundamental incompleto, 88% já tiveram alguma experiência formal de trabalho e 82% afirmam ter interesse em retornar ao mercado de trabalho. Segundo o SINE Municipal em um mês de sanção da lei apenas entre 30/40 pessoas têm acessado o local na busca de vagas de emprego, destes apenas 05 pessoas foram contratadas. Houve oferta de um curso na área de vendas e há outro com inscrições abertas para informática básica. As dificuldades para reinserção profissional se encontram na baixa escolaridade, falta de endereço fixo, necessidade de confecção de documentos civis e registros de passagem pelo sistema de justiça (que representa 70% da amostra). O SINE informa que para se cadastrar nas vagas de emprego é necessário comparecer ao local com documento de identificação.

Segundo Thiago, um dos flanelinhas entrevistados que procurou o SINE Municipal: “cadastro no SINE eu tenho. Eu já larguei currículo […]  aí eu fui no SINE semana passada e pra mesma vaga, que eu peguei um encaminhamento pra auxiliar de serviços gerais ali na Praia de Belas, cheguei lá, tinha uns quarenta pra concorrer comigo […] é as mesmas vagas que são pra todo mundo, só tem aquele guichê que é específico pra ti (flanelinha), tu não espera junto com os outros”.

Marino, aos 44 anos, conta que já teve emprego fixo como gari e na época manteve a função de guardador de carro também, tinha dois empregos para sobreviver e reflete sobre como se deu a sanção da lei: “como tu vai manter família, quem tem família… até tu fazer um curso e pegar num serviço… muito eu já larguei currículo”.

Durante a discussão do projeto na Câmara houve grande mobilização por parte destes trabalhadores que têm a prática de guardar veículos sua fonte de renda. A lei sancionada além de proibir a atuação dos flanelinhas também, cria um sistema de fiscalização e repressão que inclusive permite que agentes de trânsito e guarda municipal removam quem estiver atuando nas vias públicas.

As pessoas que forem flagradas trabalhando como flanelinhas serão penalizados com multa de R$ 300,00 e se houver reincidência o valor dobra para R$ 600,00. A Prefeitura fica como “responsável” pela exploração do estacionamento em vias públicas, ou seja, possivelmente através da contratação de empresas para a colocação de parquímetros. A profissão “flanelinha” passa a ser extinta e os trabalhadores colocados na ilegalidade, comprometendo a renda de diversas pessoas e suas famílias; por outro lado, a prefeitura abre portas para “exploração” da via pública e dos moradores da cidade pelas empresas de parquímetro.

Thiago, que nunca cobrou um valor fixo para guardar os veículos nas ruas, nos conta que mesmo sem mudar seu sistema de trabalho, sente uma postura hostil das pessoas após a sanção da lei:

“ – Não, nunca tive (cobrança de valor fixo). No meu caso, no nosso caso aqui é colaboração espontânea[…] Mas, tipo, dá pra ver bastante que muita gente, pessoas que vinham te cumprimentar e diziam “ah, cuida aí pra nós”, agora eles entram, saem, não abrem o vidro pra te dizer nada… ”.

Marino, guardador que atua em outro ponto da cidade tem a mesma prática “o que eu ganhava dinheiro era com a lavagem de carros, de estacionar cobrar eu nunca cobrei nada, dá o que quer, ninguém é obrigado a dar nada… só que dá um bom dia, né?”

O que garante a segurança para continuar trabalhando, segundo Thiago e Marino relataram é o  vínculo com os moradores da rua onde trabalham, um há 5 anos e o outro há 22 anos.

 

“[…] a Associação dos Moradores da Cidade Baixa, falou que já foi feito um abaixo-assinado, que os moradores da Cidade Baixa não querem parquímetro de jeito nenhum […]  Os moradores que se sentem seguros de sair de casa de noite pra dar uma volta com os cachorros, as mulheres, as senhoras que saem aí, elas falam “Meu Deus meu filho, nem me fala em botar parquímetro, aí vou sair, vou olhar pro

parquimetro, vou cumprimentar o parquímetro, se eu for assaltada, eu vou dizer o que pro parquimetro?”, e é verdade né, se parar pra pensar”.

 

Marino, indignado com a situação que estão os trabalhadores em Porto Alegre, coloca “por isso que eu não voto em ninguém, a preferência deles é acabar com o pobre… ajudar, ninguém ajuda, te dar um serviço… eu já larguei muito currículo, por isso que tô aqui há 22 anos”.

 

Marino e Thiago entrevistados na reportagem seguem trabalhando como flanelinhas para sobreviver, enquanto as supostas estratégias de “enfrentamento” da situação pela prefeitura criam mais medo, violência do que alternativas para a vida dos trabalhadores, estes criam suas próprias estratégias para lidar com a repressão. Não querem e nem podem ser multados, pois o valor de 300 reais tiraria o pão da mesa da família. Os trabalhadores seguem resistindo, na luta por condições de vida.