Lavagem de dinheiro e a hipocrisia estruturante do Sistema Financeiro Internacional

14 de outubro de 2017, Bruno Lima Rocha

O tema da lavagem de dinheiro ganha volume e importância nas ações de Cooperação Juridica Internacional e obedece à agenda de projeção de poder em termos securitários vindo do Império. Iniciando na década de ’80, e desenvolvido em paralelo ao esforço de apoio aos mudjahiddin do Afeganistão lutando contra a ocupação da União Soviética, a circulação de ativos não rastreáveis ocupou a agenda das agências de inteligência, redes de terrorismo, narcotráfico, tráfico de armas e atividades complementares a segurança avançada dos Estados líderes – como em operações de cobertura e financiamento dos contras da Nicarágua, treinando em Honduras. O inimigo global do “ocidente” estava sendo derrotado e,  automaticamente, os alvos permanentes tinham de ser modificados.

A partir da década de ’90 do século XX, na esteira da tentativa de mundializar as bases institucionais do pós-consenso de Washington, os Estados Unidos conseguiram fazer aprovar uma série de medidas, antes passando por debate conceitual, onde caracterizavam as formas de estruturação do crime organizado. O próprio conceito de organização criminosa implica em certa complexidade de tipo empresarial, e com boa capacidade de gerenciar recursos. Destas tarefas, uma parte sempre delicada é transformar recursos obtidos de forma ilegal em legais e tangíveis, resgatáveis de alguma forma, podendo ser transformados em fatores de acumulação não apenas nominal.

Se observarmos a sequência de acontecimentos na chamada guerra às drogas e a política de securitização na América Latina, veremos o caso colombiano como exemplar. O consumo de cocaína explodindo nos EUA, a interpenetração dos carteis entre as oligarquias dominantes na Colômbia e a estratégia do Império de aplicar o Plan Colombia. A meta não era e nem jamais foi acabar com o tráfico, mas interromper a evasão de divisas dos EUA para o nosso vizinho latino-americano, incluindo o agravante que se tratava de exportação de agro-indústria com poucos insumos, cadeia de valor ilegal e não tributada.

Os carteis de Cali e antes de Medellín capturaram uma parcela importante dos poderes de Estado colombiano, o que também motivou aos EUA a intervir de maneira estrutural. O período anterior ao Plan Colombia implicou em captura de partes do combalido poder de Estado, assim como do Estado paralelo – na formação das unidades paramilitares incentivadas com o Projeto Convivir – e este movimento opera como preparação para a tomada quase completa com soberania mais que limitada em função das ações de “segurança hemisférica”.

A exposição de motivos para a legislação brasileira anti-lavagem

A lei brasileira é datada de 03 de março de 1998 (ver encurtador.com.br/grFGV) e na sua epígrafe de definição: “Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências.”

É muito interessante observar as exposições de motivos do então ministro da Justiça do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso (FHC, 1995-1999 e 1999-2002), em especial os itens 21, 34 e 89. A mesma foi tornada pública como documento oficial em 18 de dezembro de 1996 e fundamenta a criação da lei já citada (para a íntegra do texto ver:  encurtador.com.br/rvET8)

Conforme destacado acima, elenco os seguintes motivos, em ordem numérica:

Item 21 da exposição de motivos do então ministro Nelson Jobim (1996), titular do MJ, para a promulgação da Lei 9613“embora o narcotráfico seja a fonte principal das operações de lavagem de dinheiro -, não é a sua única vertente. Existem outros ilícitos, também de especial gravidade, que funcionam como círculos viciosos relativamente à lavagem de dinheiro e à ocultação de bens, direitos e valores. São eles o terrorismo, o contrabando e o tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção, a extorsão mediante sequestro, os crimes praticados por organização criminosa, contra a administração pública e contra o sistema financeiro nacional. Algumas dessas categorias típicas, pela sua própria natureza, pelas circunstâncias de sua execução e por caracterizarem formas evoluídas de uma delinquência internacional ou por manifestarem-se no panorama das graves ofensas ao direito penal doméstico, compõem a vasta gama da criminalidade dos respeitáveis. Em relação a esses tipos de autores, a lavagem de dinheiro constitui não apenas a etapa de reprodução dos circuitos de ilicitudes como também, e principalmente, um meio para conservar o status social de muitos de seus agentes.”

Assim, a ênfase na circulação de ativos ocultos é focada no ato criminoso e na ação de irrigar a economia ilegal e, automaticamente, coloca a vigilância sobre esta atividade em uma escala  global e com necessidade de cooperação.

Item 34 da exposição de motivos do então ministro Nelson Jobim (1996), titular do MJ, para a promulgação da Lei 9613 “Observe-se que a lavagem de dinheiro tem como característica a introdução, na economia, de bens, direitos ou valores oriundos de atividade ilícita e que representaram, no momento de seu resultado, um aumento do patrimônio do agente. Por isso que o projeto não inclui, nos crimes antecedentes, aqueles delitos que não representam agregação, ao patrimônio do agente, de novos bens, direitos ou valores, como é o caso da sonegação fiscal. Nesta, o núcleo do tipo constitui-se na conduta de deixar de satisfazer obrigação fiscal. Não há, em decorrência de sua prática, aumento de patrimônio com a agregação de valores novos. Há, isto sim, manutenção de patrimônio existente em decorrência do não pagamento de obrigação fiscal. Seria desarrazoado se o projeto viesse a incluir no novo tipo penal – lavagem de dinheiro – a compra, por quem não cumpriu obrigação fiscal, de títulos no mercado financeiro. É evidente que essa transação se constitui na utilização de recursos próprios que não têm origem em um ilícito.”

Entendo que há um profundo equívoco na exposição acima, e não levava em conta – ao menos à época – a capacidade de irrigar o capital acionário aberto em Bolsa, assim como outras atividades lícitas. É evidente que não caracterizar a evasão e a compra de títulos e ações de empresas de capital aberto como um ilícito semelhante ao da lavagem traz uma profunda suspeição sobre o fluxo deste capital. Sabe-se perfeitamente bem que os recursos advindos de atividades ilícitas e evasão fiscal percorrem caminhos semelhantes como vem sendo comprovado por organizações internacionais de advocacy e consórcios investigativos do setor.

Item 89 da exposição de motivos do então ministro Nelson Jobim (1996), titular do MJ, para a promulgação da Lei 9613 “Como o curso da moeda, modernamente, é realizado quase que exclusivamente pelos sistemas financeiros de cada país, as operações de lavagem, num ou noutro momento, passarão pelos referidos sistemas. Considerando os modernos avanços das telecomunicações, o processo de integração, de globalização das economias e de interligação dos sistemas financeiros mundiais, verifica-se que as transferências financeiras, não só dentro do território nacional, como especialmente entre países, estão extremamente facilitadas. A modernização do sistema, ao permitir transferências financeiras internacionais instantâneas, notadamente àquelas direcionadas para paraísos fiscais e bancários, acaba dificultando a persecução, o descobrimento e a apreensão dos capitais procedentes de atividades delituosas e, conseqüentemente, aumenta a eficácia da lavagem de dinheiro. Por tudo isso, está evidente o importante papel – involuntário, registre-se – que o sistema financeiro desempenha e desempenhará – se não se envolver no combate a essas atividades delituosas – na consolidação de uma indústria de lavagem de dinheiro no País, o que certamente repercutirá negativamente perante toda a sociedade brasileira e internacional.”

O item 89 falaria por si, relativizando o peso do Sistema Financeiro, o que é algo próximo do absurdo. O comentário para este item segue abaixo.

A hipocrisia estruturante do Sistema Financeiro Internacional

Como já foi afirmado por este analista em outros artigos, a maior parte dos chamados Paraísos Fiscais (acertadamente denominados de Jurisdições Especiais), fica sob a jurisdição ou soberania ampliada da Commonwealth Britânica (commonwealth.org) ou como Territórios Britânicos Ultramarinos (ver encurtador.com.br/ghv05). Em última instância, e como fora comprovado na intervenção das ilhas Turks e Caicos (ver encurtador.com.br/auyJV), é possível a ação discricionária da Grã Bretanha nestes governos, assim como ocorrera em outubro de 2010.

Para além das firmas de lavagem de dinheiro já reconhecidas em escala mundo, como a Mossack Fonseca (Panamá, mossfon.com) ou a Laveco (Belize, laveco.org), há uma presença de dimensões superlativas das maiores instituições bancárias britânicas em seus próprios paraísos fiscais. Segundo a New Economics Foundation (neweconomics.org), a existência de empresas subsidiárias, abertas como contas cobertura (shell companies) sob sigilo fiscal e Jurisdições Especiais apenas no Caribe britânico é desta ordem: o Barclays Bank tem 385 subsidiárias; o Royal Bank of Scotland (RBS) com 404; o HSBC possui 505 destas empresas a esta instituição vinculada e LloydsTSB outras 290 (dados de novembro de 2012, ver encurtador.com.br/flmq8).

Logo, o que se pode depreender é algo bastante simples. Toda a base de argumentação para o combate a lavagem de dinheiro não observa o ato de complementaridade e por vezes também de cumplicidade das instituições bancárias com a circulação de ativos em altíssima velocidade e origens mais que duvidosas. Faz parte da atual etapa de acumulação, aquilo que o economista Ladislau Dowbor está denominando apropriadamente de:

“Em termos de mecanismos econômicos, é central na fase atual a apropriação da mais-valia, já não tanto nas unidades empresariais que pagam mal os seus trabalhadores, mas crescentemente através de sistemas financeiros que se apropriam do direito sobre o produto social através do endividamento público e privado. Esta forma de mais-valia financeira tornou-se extremamente poderosa. Frente aos novos mecanismos globais de exploração, que atuam em escala planetária, e recorrem inclusive em grande escala aos refúgios nos paraísos fiscais” (ver https://goo.gl/eNTSbK).

A alegação da lavagem de dinheiro como circuito de financiamento do terrorismo integrista ou como forma de circulação e formalização do capital de origem duvidosa tem base material, mas, ao mesmo tempo, opera como justificativa para a intervenção discricionária nos aparelhos jurídicos e na punição seletiva e discricionária no século XXI.

Bruno Lima Rocha é professor de relações internacionais e de ciência política

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