Um comentário situado em 2020 sobre o livro “Quando o Google encontrou o Wikileaks”, de 2014.
Acabei de ler “Quando o Google encontrou o Wikileaks”, publicado originalmente em 2014, que chegou completo ao Brasil através da Editora Boitempo em 2015, embora o site Passa Palavra já tivesse traduzido e publicado um trecho em 2014. A maior parte do livro é a transcrição de uma entrevista que grandes executivos do Google realizaram em 2011 com Julian Assange, nome mais visível do Wikileaks, uma organização que possibilitou a divulgação de centenas de milhares de documentos secretos de Estados e megacorporações na última década.
Um raio X do imperialismo 4.0
O cenário que Julian Assange descreve é surreal, aterrorizante, mas também super interessante. O que ele nos mostra é a forma explícita pela qual o Google, uma empresa, atua para implementar os interesses geopolíticos dos EUA – e, ao mesmo tempo, como os EUA também atuam em prol da corporação. Há dois séculos se diz que o Estado é um balcão de negócios dos capitalistas, mas a verdade é que o capitalismo neoliberal globalizado aprofundou essa relação de tal forma que não é mais possível saber quem está usando quem – ou, de fato, onde se traça uma distinção entre um agente e outro. O Google marca uma entrevista, mas quem comparece são prioritariamente agentes de altíssimo nível da burocracia estatal estadunidense. Nas biografias dos supostos entrevistadores, se confudem cargos de CEOs, Secretários de Estado e membros de conselhos de ONGs multimilionárias, a depender do ano que se analisa.
O que Assange nos oferece, com a profusão de dados e fontes digna de alguém que senta sobre milhares de arquivos confidenciais, é um raio X de alta resolução do establishment: a elite da elite do poder no mundo hoje, seus longos braços e parte da sua visão de mundo, ao menos no que diz respeito à intersecção entre geopolítica, vigilância e tecnologia. Julian Assange nos convence de que é um momento sem precedentes na história do imperialismo e que o Wikileaks pode ser a organização que chegou mais perto de suas entranhas.
Um hacker liga diretamente para Hillary Clinton avisando que milhares de informações diplomáticas confidenciais dos EUA serão tornadas públicas em alguns dias, obrigando ela a realizar uma turnê a vários países para reduzir os danos geopolíticos que ele iria causar. Seria um roteiro incrível, até fantasioso, para uma série de ação, mas é apenas um fato concreto ocorrido poucos anos atrás. A postura nitidamente sarcástica de Assange, uma mistura entre genialidade e arrogância, ou o fato de que o expediente usado pela Suécia para prendê-lo foram denúncias de assédio sexual, hoje abandonadas, tudo isso constrói o cenário de um excelente filme. Mas, nesse enredo, nossas vidas reais de terceiro mundo são as afetadas pelas decisões dos vilões.
A fixação do Google com as informações falsas
O mundo era outro quando Assange editou o livro, em 2014, e quando a edição brasileira foi produzida, com prefácio de Sérgio Amadeu da Silveira – que hoje em dia apresenta um podcast fundamental sobre política da tecnologia, o Tecnopolítica. Os debates do momento eram as evidências de espionagem dos EUA contra o Brasil e outros países emergentes, assim como o significado dos levantes populares da Primavera Árabe, os movimentos Occupy e o Junho de 2013 brasileiro. O ascenso da extrema-direita, o uso político disseminado das fake news e correntes de whatsapp, bem como o próprio conceito de pós-verdade, ainda não existiam naquele momento.
Ainda assim, qualquer leitor contemporâneo da entrevista vai notar que os representantes do Google e do governo dos EUA estão muito interessados – quase fissurados – no problema da produção de documentos falsos, autenticidade e uso político dessas criações. Contei ao menos cinco momentos em que eles trazem a conversa para esse tema (pp. 75, 92, 118, 120, 122). Oficialmente, a dúvida é a capacidade do Wikileaks em assegurar a veracidade dos documentos confidenciais enviados. Assange responde, diversas vezes, que não considera frequentes nem relevantes essas tentativas de falsificações para uso político. Olhando o cenário mais amplo, esse é o grande tema onde sua opinião parece equivocada, ao mesmo tempo em que o interesse dos entrevistadores se torna bastante suspeito.
O atual presidente da Google, Eric Schmidt, por exemplo, diz que “a desinformação se torna tão fácil de gerar […] que é do interesse das pessoas, por assim dizer, ao longo da próxima década, construir sistemas de geração de desinformação. Isso se aplica a empresas, ao marketing, a governos e assim por diante” (p. 118). A resposta de Assange é que a dificuldade para gerar documentos falsos fidedignos é muito maior do que a de vazar a enorme quantidade de informações reais que são necessariamente produzidas por entidades burocráticas como governos e empresas. Mesmo frente a uma hipotética publicação de muito material falso, ele questiona: “como é que as pessoas chegam às informações? Será que ficam sabendo por amigos e vão dar uma olhada? Colocam um link no site delas? […] Existe um tipo de gráfico de influência que você usa para chegar à informação. Você pode inundar a internet com informações, mas isso não significa que você vai inundar o gráfico de influência com informações. São duas coisas bem diferentes” (p. 123).
Os entrevistadores não souberam (ou não quiseram) convencer Assange de que isso era possível. Chegaram a fazer uma brincadeira de que a divergência entre eles teria que ser resolvida em uma queda de braço (p. 120). No entanto, estamos no final de 2020 e sabemos muito bem que isso 1. é possível; 2. tem implicações políticas gigantescas; e 3. as ferramentas dos próprios entrevistadores foram fundamentais para fazer isso acontecer. Em particular suas redes sociais, que desenham a seu bel-prazer a paisagem informacional em que vivemos com algoritmos de funcionamento que são caixas-pretas, inauditáveis para toda a sociedade. Faz parte desse processo, também, o enquadramento das pessoas em tipos psicológicos, moldados a partir de traços de personalidade, ferramenta utilizada pelo Facebook para segmentar seu público e as propagandas direcionadas, o suprassumo de seu negócio. Uma história bem descrita no documentário “Privacidade Hackeada“, de 2019.
A partir desse ponto, restamos com mais dúvidas do que certezas. Esse interesse do Google e Governo dos EUA servia à busca por uma forma de deslegitimar as informações do Wikileaks; por uma forma de se proteger do fenômeno das fake news que eles já previam que viria; ou fez parte de seu processo para, de fato, criar os mecanismos para o uso político das fake news tal qual vemos hoje? A última hipótese traria um novo olhar sobre o surgimento e a intencionalidade dessa tecnologia de intervenção em massa na opinião pública. Seria muito interessante ouvir a opinião de Julian Assange sobre isso, não fosse a situação em que ele se encontra agora.
Uma história que ainda não acabou
Assange está, hoje, colhendo frutos amargos de quem expôs décadas de violência, golpes e violação de direitos humanos por parte dos EUA e sua máquina de guerra. Após sete anos refugiado – e altamente vigiado – na Embaixada do Equador, o país revogou seu apoio e o deixou ser preso pela Inglaterra, onde está detido há mais de um ano sob condições desumanas que, neste momento, colocam sua vida em risco.
O mais importante e urgente, neste momento, é lutar por sua liberdade – e com ela, passar uma poderosa mensagem a favor da liberdade de expressão e do direito da população em saber o que planejam os poderosos, os governos e corporações que possuem poder para decidir sobre o mundo em que vivemos. O presidente Trump está balançado por uma campanha internacional para conceder a Assange um perdão presidencial nas próximas semanas, ao final de seu mandato. Há uma campanha também pelo mesmo perdão a Edward Snowden, que revelou ao mundo, em 2013, como os EUA obtinham acesso aos bancos de dados das principais empresas de comunicação e redes sociais do mundo através do programa PRISM.
Embora sejam os Estados quem executam a repressão e a tortura mais visíveis a essa geração de hackers e cypherpunks libertários, seria um erro imperdoável com o conteúdo do livro se o texto terminasse apenas com esse olhar. Politicamente, o que é mais interessante na perspectiva de Assange é não ter caído no canto da sereia neoliberal, de que a liberdade do capital e das empresas tem alguma relação com a liberdade humana. No livro, ele inclusive faz críticas a parte do movimento hacker por achar que o risco da vigilância em massa está apenas na mão dos Estados. Seu argumento é que o Google – mas também Apple, Facebook, Amazon, Microsoft – também são organizações com uma concentração de poder inaceitável e com um projeto político bem delineado que faz delas, necessariamente, inimigas dos povos.
Estamos no olho do furacão do “capitalismo de vigilância” e não existe subversão possível sem identificar seus agentes e suas ferramentas. É exatamente isso que este livro nos oferece.
Texto de opinião de autoria de JG, militante da Resistência Popular Estudantil – Floripa.
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