23 de agosto de 2017, Bruno Lima Rocha
O fluxo de ilícitos financeiros é uma das formas mais evidentes de evasão de divisas – fiscal ou em ativos – em escala mundo, transferindo recursos coletivos para a acumulação privada. Isso implica em concentração de riqueza e empobrecimento das sociedades. Ao contrário da imagem mais difundida, os chamados “paraísos fiscais” não são necessariamente ilhas ou territórios isolados, mas sim soberanias vinculadas às potências globais como EUA, Grã Bretanha (e Commonwealth), Suíça, Alemanha e China. Considerando que Estados com projeção mundial são, de fato, controladoras destas “jurisdições especiais” que escoam a riqueza do planeta, seria razoável que os instrumentos e instituições de fiscalização e governança não estivessem vinculados a estes países. Mas, como forma o padrão hegemônico no Sistema Internacional (SI), ocorre justamente o oposto. Há uma sobreposição de interesses, levando a uma evidente suspeição desta arquitetura de governança financeira.
A rede de advocacy Financial Transparency Coalition (financialtransparency.org) aponta seis instituições que regulam ou incidem diretamente no fluxo financeiro mundial. De modo descritivo, as exponho aqui: Financial Action Task Force (Força Tarefa de Ação Financeira – ver fatf-gafi.org), concebida pelo G-7 (Grupo dos países mais ricos do mundo do pós-guerra, EUA, Alemanha, Japão, Inglaterra, França, Itália e Canadá) em 1987 e formalizado como instituição multilateral em 1989. A FATF define “jurisdições não cooperativas” e de “alto risco”, e nenhuma destas em sua lista de perigo financeiro (Bósnia e Herzegovina, Coreia do Norte, Etiópia, Irã, Iraque, Síria, Uganda, Vanuatu e Iêmen, ver http://bit.ly/2v1BWUG ) pode ser considerada uma “jurisdição especial” ou “paraíso fiscal”.
O BIS (Bank of International Settlements, Banco Internacional de Compensações, ver bis.org), fundado em 1930, tem sede na Basiléia (Suíça) e responde por quase cem por cento das transações interbancárias privadas do mundo. Para coordenar as práticas dos bancos, o BIS tem o Basel Committee on Banking Supervision (BCBS, Comitê da Basiléia de Supervisão Bancária, ver http://bit.ly/2hRCZS7) responsável por implantar as normas e Acordos da Basiléia I (1988), II (2004) e III a entrar em vigor em 2019. Este último atende as prerrogativas dos países ricos e é visto com preocupação pelos membros do G-20 Financeiro (grupo das vinte maiores economias do mundo, englobando o centro e a Semiperiferia, ver g20.org). Quando implantado, os Acordos da Basiléia III e suas exigências de liquidez elevada podem operar como uma bomba de sucção de recursos conforme o grupo de consultoria do G20, o B20 (ver http://bit.ly/2uOUOT6)
Ainda no âmbito do G20, o organismo responsável por “administrar” a crise após o crime fabricado pela bolha de 2007 e 2008 é o Financial Stability Board (FSB, Conselho de Estabilidade Financeira, ver fsb.org) criado em abril de 2009 e antecedido pelo Financial Stability Forum (FSF). Este primeiro foi criado pelo conselho de ministros da economia e presidentes dos bancos centrais dos países membros do G7, em fevereiro de 1999. São parte do FSB, além das pastas da Fazenda dos países membros, as seguintes instituições multilaterais: BIS (também através dos organismos BCBS, CGFS e CPMI), FMI (Fundo Monetário Internacional, ver imf.org), OCDE (OECD, ver oecd.org), Banco Mundial (ver worldbank.org) e as instituições de padronização de supervisão de seguros (IAIS, ver iaisweb.org), contabilidade (IASB, ver ifrs.org) e valores mobiliários (IOSCO ver iosco.org).
É interessante observar que o IASB tem envergadura internacional, mas pertence a uma instituição privada, o IFRS (Fundação e Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade, na sigla em inglês) e tem como sede pública a cidade Londres, mas como sede legal uma jurisdição especial dos Estados Unidos, o estado de Delaware, um paraíso fiscal dentro do território da superpotência (ver http://bit.ly/2vqcCra). Um exemplo do emprego do estado do Delaware para ocultar ativos é a obscura figura da Blessed Holdings LLC – uma offshore onshore, ou seja, em território continental – sócio oculto e controlador da fusão do frigorífico Bertin pela JBS dos irmãos Batista. Não por acaso, o “gerente” da empresa localizada nos EUA está em Lugano, Suíça, outra jurisdição especial, e é um escritório de advocacia empresarial de propriedade de Andrea Prospero (ver prosperolegal.ch). Se observarmos os maiores financiadores do IASB veremos as quatro maiores empresas de auditoria contábil do planeta, sendo que todas já se envolveram em vultosos escândalos e acusações de fraude: Deloitte (ver http://bit.ly/2vWTS3S), Ernst & Young (ver http://aol.it/2vYmfhl), PwC (ver http://ind.pn/2bavNZt) e KMPG (ver http://trib.in/2vuAlEX). Isto caracteriza no mínimo um elevado risco moral (moral hazard) e conflito direto de interesses alegados.
A última das instituições multilaterais de governança das transações financeiras é a Organização Internacional de Comissões de Valores Mobiliários (IOSCO, ver iosco.org). Fundada em 1983, a instituição engloba 95% dos mercados de valores em 115 jurisdições, incluindo uma vasta parte das consideradas “paraísos fiscais” como sendo que dentre os 124 membros ordinários, incluem 75% dos mercados emergentes (ver http://bit.ly/2vWMINb). A IOSCO tem origem em uma associação estadunidense similar, fundada em 1978 e, em paralelo ao avanço e vitória da Superpotência na Guerra Fria, globaliza sua projeção. Interessante observar a existência de três forças-tarefa atuando respectivamente em coordenação com a FSB alegadamente tentando regular ou diminuir o dano dos Mercados não Regulados (Task Force on Unregulated Markets and Products – TFUMP), Hedge Funds e Entidades afins (Task Force on Unregulated Entities – TFUE) e Derivativos (Task Force on OTC Derivatives; para estas e outras comissões, ver http://bit.ly/2wQvgpU). O produto destas forças-tarefa são relatórios compartilhados e resultam em pouca efetividade regulatória. Vale destacar que as maiores corretoras do planeta, as mesmas acusadas de envolvimento nas operações fraudulentas de 2007 e 2008, assim como bancos de investimento operando nesta escala, são parte ativa das bolsas “reguladas” pela IOSCO (como exemplo de fraude na Taxa Libor, ver http://bit.ly/2jJROD7).
Poucos países são membros plenos das seis instituições multilaterais em escala mundo de suposta “regulação” das transações financeiras. Dentre tais Estados estão EUA, Brasil, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Suíça, Austrália e China. Se forem quantificados os mecanismos de ordenamento dos fluxos de ativos financeiros, 61% são controlados por países do centro do capitalismo, 28% pela Semiperiferia (com exceção do Brasil) e 10% por países periféricos. A exceção oriunda da Semiperiferia incluída no centro decisório é nosso país, o que indica o seu peso estratégico para o SI e, por consequência, a influência nefasta dos economistas neoliberais á frente da autoridade monetária e da área econômica da União, quase todos atrelados ao mercado de finanças e capitais.
Bruno Lima Rocha é professor de relações internacionais e cientista político (www.estrategiaeanalise.com.br – texto e coluna de áudio / https://estrategiaeanaliseblog.com – audiovisual e entrevistas radiofônicas / blimarocha@gmail.com para E-mail e Facebook)