por Mulheres na Resistência – RJ
É inegável que o atual (des)governo de Jair Bolsonaro, reflexo da articulação com as elites e camadas conservadoras da sociedade brasileira, vem sendo sinônimo de ataques aos menos favorecidos e aos movimentos sociais, com seus cortes e afrontas à saúde, educação e aos direitos trabalhistas. Quando se pensa a situação das mulheres, o cenário é ainda mais alarmante e assustador, já que é um governo que fomenta diariamente discursos de ódio, no país que ocupa a quinta posição no ranking mundial de feminicídios, e o primeiro lugar em morte de pessoas transexuais. Além disso, aproxima ideais de conservadorismo a valores morais, fazendo regredir ainda mais os debates sobre a liberdade dos corpos das mulheres, direitos reprodutivos e à vida. Esse projeto político e econômico centrado na defesa de uma reforma da previdência, articulado com as já aprovadas reformas trabalhistas e a EMC 95/2016 (teto de gastos) afeta principalmente as mulheres. Sendo assim, mostra-se urgente compreender esse quadro e traçar os caminhos para os primeiros passos dessa luta, em que, indubitavelmente, as mulheres devem ocupar a linha de frente, por serem as mais brutalmente atingidas por essas medidas antipovo.
No atual contexto brasileiro, fica ainda mais evidente o quanto o capitalismo se beneficia da exploração da força de trabalho das mulheres, e o quanto esse quadro está em brutal expansão. O que pretendemos com esta análise é refletir sobre o projeto político-econômico em vigor, e o atrelamento entre a intensa jornada do trabalho remunerado das mulheres – através dos ataques aos direitos trabalhistas e desmonte da previdência -, e o processo de também intensificação da jornada de trabalho não remunerada (cuidados domésticos e da família), gerado pela diminuição e possível extinção de serviços públicos básicos (EMC 95/2016). Tudo isso está em pleno vapor, com a disseminação de discursos de ódio, que embarreiram o avanço das pautas feministas, como aquelas que pretendem dar visibilidade a esse trabalho gratuito do âmbito privado. Além disso, assistiu-se, com a ascensão de Bolsonaro, à aplicação de uma fórmula perigosa: a difusão de um discurso ideológico, de caráter misógino e conservador, de fácil adesão atualmente, e, por outro lado, a imposição de medidas austeras, como a reforma da previdência e cortes nos investimentos públicos em saúde e educação. Assim, tornaram-se mais agressivos os ataques à luta pela descriminalização do aborto e às discussões sobre identidade de gênero, educação sexual, violência doméstica etc., que, em realidade, interessam a um projeto político bem definido. Tais ataques, que em um primeiro momento parecem escapar aos interesses econômicos das elites capitalistas, mascaram, com uma estratégia perversa, a necessidade do capitalismo de manter a exploração e a subordinação das mulheres. Portanto, tais investidas não são apenas mera distração, com o fim de ocultar um projeto maior: seus resultados são concretos e materiais.
Em momentos de crise política, econômica e religiosa, os direitos das mulheres são os primeiros a serem perseguidos (1). Direitos não são garantias, mas precisam a todo o momento serem vigiados e reivindicados. Antes mesmo de as mulheres entenderem o seu poder de organização, sentem na pele as opressões que provém tanto da classe social, como do poder masculino e do racismo – que também estruturam a nossa sociedade. As instituições ditas formais (como o Estado e tudo aquilo e aqueles que se vinculam e dependem dele) produzem, reproduzem e reforçam hierarquias de gênero. Essas condições se agravam em grupos que são atravessados por outras estruturas sociais, como a classe, a raça/etnia, a sexualidade, a identidade de gênero, etc. No entanto, é necessário enfatizar que não basta constatar que os ataques são mais cruéis às mulheres, ainda que essa afirmativa seja importante, mas entender que o patriarcado também se articula/organiza com o capitalismo, agravando ainda mais as diferenças de gênero na luta de classes. A exploração das mulheres não é mero efeito colateral da intensificação da exploração dos trabalhadores/as, assim como o racismo. A população negra, historicamente explorada em sua força de trabalho escravizada e/ou precarizada, também constituiu um dos pilares fundamentais para a formação do capitalismo, garantindo sua expansão e seu enraizamento. A saber, a naturalização do controle dos direitos reprodutivos, a divisão sexual do trabalho, a exploração gratuita da força de trabalho feminina e da mão de obra escravizada demonstram que esses trabalhos são, na realidade, engrenagens fundamentais para a existência e a continuidade do dito “trabalho produtivo” do capitalismo (2) .
No fim de 2017, mais de 1,2 milhão de casos de violência doméstica no Brasil não foram solucionados (3). No mesmo ano, 4.963 mulheres foram mortas (uma média de 13 assassinatos por dia), o maior número registrado pelo Atlas da Violência desde 2007 (4). Destes, 66% foram de mulheres negras, pois a taxa de mortes destas mulheres cresceu 60,5% entre 2007 e 2017, em contraposição a um crescimento de 1,7% no caso de não-negras. Quase um terço dos casos de feminicídio de 2017 resultam de agressões no domicílio. Já os dados de mortes de mulheres por arma de fogo apontam o número de 52%, sendo 11% dentro de casa (5), o que nos fornece argumentos contra a flexibilização do porte de armas de fogo, que pode aumentar significativamente o número de feminicídios e, principalmente, a impunidade – já recorrente – dos culpados.
Não é possível falar sobre as mulheres sem pensar na pouca condição dada à existência de pessoas LGBTIs, principalmente mulheres lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. No caso das pessoas trans, a marginalização as excluiu de qualquer dado e estudo público que pudesse entender as violências que sofrem. Mulheres e homens trans são afetadas/os por mais de uma estrutura de poder: a classe, o racismo, a LGBTfobia e o machismo. Em 2017, foram registrados 193 casos de mortes envolvendo pessoas LGBTI+ (6). Destes, 54 foram de mulheres lésbicas (7), o maior número registrado desde 2014. Também são alarmantes os dados de suicídios de lésbicas, que mostram 19 casos no ano referido, sendo que de todas essas mortes, 43% eram mulheres negras (8). O Brasil lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans, tendo registrado 868 mortes entre 2008 e 2016 (9). Assim como ocorre com os dados sobre o feminicídio e lesbofobia, que ainda não incluem mulheres trans, os casos de transfobia são subnotificados. O não reconhecimento das identidades trans – socialmente e institucionalmente -, a exclusão dessas pessoas do seio familiar, escola e mercado de trabalho, as/os invisibiliza e as/os empurra para a marginalidade e à morte por assassinato. Todos esses dados oficiais sobre as mulheres podem ser muito maiores e drásticos, pois muitos casos não são sequer registrados, e isto ocorre se entendermos a estrutura precária das instituições que atendem as ocorrências e as vítimas. Em sua maioria, homens ocupam essas cadeiras e reproduzem toda uma estrutura de dominação masculina, muitas vezes difíceis de captar ou identificar, pois foram naturalizadas.
Na linha das absurdas declarações da ministra da Família do atual governo, Damares Alves, o parlamentar Fernando Holiday declara guerra aos (mínimos) direitos reprodutivos das mulheres. O vereador por São Paulo e integrante do MBL apresentou o Projeto de Lei 352/2019 na Câmara Municipal de São Paulo que tem como proposta dificultar (e na prática, inviabilizar) o aborto nos casos que são legalizados no Brasil. O texto prescreve enquanto obrigatório a obtenção de um alvará judicial para realização do aborto. E se a gestante tiver sucesso na obtenção do mesmo, há um período de 15 dias em que deve se submeter a um “tratamento psicológico” que visa reverter sua decisão. Dessa forma, o que está por trás dessas exigências é o impedimento da realização de um procedimento legal de interrupção da gravidez, pois a demora do processo judicial acarreta em estender a gestação a tal ponto que não seja possível, nos parâmetros da lei, interrompê-la. O parlamentar vai além: no texto do PL, é previsto também a internação psiquiátrica caso seja constatado “propensão ao abortamento ilegal”, reforçando o compromisso do Estado com o sistema patriarcal e reforçando também a posição contrária a autonomia feminina, nesse caso, ao patologizar meninas e mulheres que passam por uma gravidez indesejada. As mulheres que mais morrem por consequência do aborto ilegal no Brasil são as negras, jovens, solteiras e com grau de escolaridade até o ensino fundamental e como o movimento de mulheres já vem apontando, a prática do aborto é uma realidade, seja dentro dos parâmetros legais ou à margem dos mesmos.
Apesar da criminalização do aborto, não é fornecido pelo sistema vigente nem pelo Estado, as mínimas condições para que as mulheres trabalhadoras consigam manter a gestação e posteriormente a vida dos filhos de maneira digna. Na prática, elas são obrigadas, por serem as principais provedoras da casa, a vender sua força de trabalho, sobretudo no mercado informal, enfrentando múltiplas jornadas de trabalho. Esse cenário é agravado pelo projeto de Reforma da Previdência em andamento no Congresso Nacional. O terreno já havia sido preparado por uma cruel Reforma Trabalhista e pela promulgação da Emenda Constitucional 95/2016, unindo a precarização do trabalho à condenação dos serviços de saúde, educação e os programas sociais. Neste quadro, a destruição da previdência em curso surge para completar o tripé da condenação de milhares de trabalhadoras e trabalhadores a uma vida de miséria e adoecimento. É necessário confrontar os pontos dos projetos mencionados com a realidade material das relações de produção e reprodução da força de trabalho em combinação com a opressão sistêmica do racismo e do patriarcado. Desta forma, evidenciamos que são as mulheres trabalhadoras, sobretudo mulheres negras, as que mais dependem dos equipamentos públicos de saúde e educação, visto que as tarefas do cuidado e educação das crianças, dos idosos e dos enfermos recaem quase exclusivamente sobre a mulher. O congelamento dos gastos também vem afetando diretamente a verba destinada a políticas públicas voltadas para promoção de autonomia e combate à violência contra a mulher.
Se a EMC 95 incide diretamente no aumento da jornada de trabalho doméstico e dificulta o acesso de mulheres aos mecanismos de combate à violência, também a Reforma Trabalhista contribuiu para o agravamento de ambos aspectos: o aumento para 12 horas da jornada de trabalho e a criação do contrato de jornada intermitente agravam o peso da múltipla jornada enfrentada pelas mulheres, enquanto as novas regras para punição dos casos de assédio intensificam a violência à qual as mulheres mais precarizadas estão mais expostas, visto que a indenização passa a ser correspondente ao valor do salário recebido pela trabalhadora. Em outras palavras, quanto mais precarizada a mulher, mais barato custa assediá-la. A esse quadro já suficientemente devastador, a Reforma da Previdência exclui a possibilidade de aposentadoria apenas por tempo de contribuição e eleva para 62 anos a idade mínima obrigatória para mulheres, exigindo 15 anos de contribuição mínima – número que sobe para 35 se desejarem a aposentadoria integral. Como destacado anteriormente, o peso desse combo explosivo de ataques recai com força máxima nos ombros da mulher negra e periférica que, além de sofrer uma carga de trabalho doméstico 2,4 vezes maior que um homem branco, são as que recebem menores salários e mais ocupam postos informais e precarizados. O racismo estrutural que exclui sistematicamente o acesso de mulheres negras aos postos formais de emprego desde a escravidão define o recorte deste grupo como o mais atingido pelo processo em curso. As exigências das múltiplas jornadas aliadas ao machismo e racismo estruturais empurram cada vez mais as mulheres para os postos informais de trabalho e/ou submetendo-as a uma lógica que desobriga os patrões do cumprimento mínimo de garantias, restando apenas a possibilidade de um trabalho descontínuo e sub-remunerado. Desta forma, as mulheres são na prática ainda mais impossibilitadas de atingir em vida o tempo necessário de contribuição para o recebimento das suas aposentadorias integrais.
A velha política ganha força com o governo Bolsonaro, entretanto com uma roupagem ainda mais caricata e cruel por sua pauta totalmente antipovo que caracteriza o casamento dos ideais neoliberais com a grande dose de conservadorismo. A saída para tal cenário não estará em velhas táticas domesticadas de uma esquerda que continua recuada, afastada da base, burocratizada, personalista e engessada, e que propõe uma conciliação entre classes e entre instituições, mas sim, nas ruas, onde a luta popular é construída e se constitui enquanto resistência aos ataques de direitos básicos que os/as de baixo sofrem em meio à “crise” que continua enriquecendo a elite. Como vimos, nós, mulheres, somos uma das principais vítimas no governo vigente, do sistema Capitalista e do Estado e aceitar tais hostilidades não deve ser a nossa escolha. Se afirmamos que a luta feminista não é mero acessório da luta anticapitalista, porque o patriarcado também constrói e fundamenta o capitalismo, reforçamos que a saída é nos organizarmos coletivamente, criando redes nas quais possamos nos fortalecer e fortalecer a mobilização e a construção de um efetivo trabalho de base nos locais onde estamos inseridas, como, por exemplo, nossos locais de trabalho, estudo, moradia e movimentos sociais. A resistência concreta para barrar esses ataques só pode ser palpável se for construída de forma coletiva, com solidariedade entre os/as oprimidos/as e explorados/as e com a participação direta e concreta das mulheres.
(1) Em referência à bem conhecida citação de Simone de Beauvoir: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”.
(2) A separação dos espaços em público/ privado e produtivo/ reprodutivo são utilizadas para perpetuar a violência de gênero. O público é todo o espaço dominado por homens, como a política, a economia e a organização da sociedade. O espaço produtivo é o mais importante para a acumulação capitalista, pois é de onde sai o produto final da exploração do trabalho: o dinheiro. Por sua vez, o espaço privado é o lar, “destinado” às mulheres (mães, cuidadoras, zeladoras da casa e da saúde). E trabalho reprodutivo se refere a todas as atividades executadas pelo gênero feminino e que não são remuneradas – ou seja, desimportantes do ponto de vista capitalista. Os espaços ocupados pelas mulheres, há séculos, foram vistos como inferiores, como a residência e a família. E se esse lugar não importa socialmente, ele não precisa de “intromissão” nos casos de violência, portanto, a exploração emocional e física de mulheres e crianças não é considerada, mas tratada como um problema privado (homem e mulher/pai e mãe).
(3) Relatório Human Rights Watch https://www.hrw.org/pt/world-report/2019/country-chapters/326447
(4) Atlas da Violência de 2019. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf
(5) Ibidem.
(6) Ibidem.
(7) Dossiê sobre o Lesbocídio no Brasil. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/fontes-e-pesquisas/wp-content/uploads/sites/3/2018/04/Dossi%C3%AA-sobre-lesboc%C3%ADdio-no-Brasil.pdf
(8) Ibidem.
(9) Dados do Trans Murder Monitoring Project. Disponível em: https://tgeu.org/tmm/