ESTAMOS EM CAMPO, ESTAMOS EM MARCHA: Manifestação contra o genocídio do povo negro e indígena em Porto Alegre

Texto e imagens por Alass Derivas

Na tarde do dia que começou triste, com a notícia da morte do menino Miguel de 5 anos em Recife (PE), mais uma vítima do racismo de uma elite de mentalidade ainda escravocrata, o grito de que Palmares voltará ecoou em frente à Prefeitura de Porto Alegre. Foi no final do “Ato em defesa de nossas vidas, nossos territórios, nossos direitos, contra o genocídio em curso”, puxado por representante dos oito quilombos urbanos de Porto Alegre. A manifestação, com faixas e falas no microfone, apresentou diversos pontos em que os poderes municipal, estadual e federal estão sendo negligentes e agentes do genocídio da população negra. A manifestação reuniu, no Paço Municipal, representações dos oito quilombos urbanos de Porto Alegre, da população em situação de rua, indígenas e indigenistas, profissionais da saúde, apoiadores autônomos e oriundos de diversos coletivos e organizações. O Prefeito Nelson Marchezan Jr não deu as caras nem enviou representantes. Lideranças quilombolas protocolaram junto a um servidor municipal a carta “Quantas notas de pesar suas secretarias ainda tolerarão assinar?” (leia as reivindicações abaixo) e deram até segunda-feira para a Prefeitura se manifestar sobre o assunto. Segundo Onir Araújo, advogado e integrante da Frente Quilombola RS, este ato foi só o “ensaio geral”.

O fim do genocídio da população negra, com a denúncia de violações e demandas com condições para que isso aconteça, foi a principal pauta. Os agentes das forças de segurança do Estado são protagonistas neste extermínio. 75% das pessoas que a Polícia Militar assassina no Brasil são negros. Foi justamente o braço armado do município, através da Guarda Municipal, com oito viaturas no Largo Glênio Peres e diversos agentes disfarçados pelo Paço Municipal, que receberam quem chegava para ato. O vereador Valter Nagelstein, que recentemente debochou dos mortos por Coronavírus em um vídeo com sua família, e a Comandante Nádia, inimigos do povo pobre e do povo negro, faziam um ensaio fotográfico em frente a Prefeitura, mas se retiraram ligeirinho quando os manifestantes chegaram.

Além da polícia, o descaso e a omissão proposital dos políticos dos três poderes (executivo, legislativo e judiciários), no âmbito municipal, estadual e federal, também promovem a precariedade e a impossibilidade de uma vida digna. Já tem estudos que evidenciam como o Covid-19 está matando mais a população negra. Na carta apresentada pela Frente Quilombola, diversos elementos evidenciam como a omissão do Estado é uma estratégia de extermínio. Recorte da carta entregue à Prefeitura:
“Temos 520 anos de experiência operando contra as políticas de morte que os colonizadores implementam neste estado, sabemos que muitas vezes a não ação de vocês é uma forma altamente qualificada utilizada para o nosso extermínio. Estamos imunizados contra esta estratégia”.

Os empresários do país, a maioria brancos, fazem pressão para os governantes abrirem o comércio, mas eles, mesmo de portas abertas, se mantêm em seu isolamento, só mandando. Quem, na ausência de Auxílio Emergencial ou de outros suportes para uma vida digna em meio à pandemia, precisa voltar a trabalhar é a população negra e a população pobre. Se não bastasse a necessidade da exposição ao vírus, a Prefeitura ao invés de garantir fluxos seguros, cede aos empresários do transporte público e extingue em maio a linha de ônibus 384, da Vila Mapa, unificando com a linha Quinta do Portal. Medida que afeta diretamente o Quilombo Tradicional de Matriz Africana – Família de Ouro e toda a comunidade das imediações. A empresa alega prejuízo pelo pouco fluxo de gente nos ônibus devido ao isolamento, mas não é o que se vê em vídeos gravados por usuários. Sim, ônibus abarrotados, com atrasos e descumprimento de horário da tabela. A comunidade se manifestou no dia 25 de maio na Lomba do Pinheiro. Na tarde de hoje, na representação de Mãe Pati de Oxum, exige a volta imediata da Linha Mapa. “Convidamos o prefeito Marchezan a dar uma volta de ônibus lotado, para ver como está o isolamento social dentro dos ônibus. Pegamos esse transporte lotado para vir aqui e ainda não ser recebido pelo prefeito, que está virando as costas para o povo trabalhador da comunidade. Quem está aqui se manifestando hoje, tocando seu tambor, é povo de terreiro, é comunidade, é onde tem a força, é onde tem humanidade! Viemos com poucos, com todo cuidado, para não nos contaminemos, mas o senhor Nelson Marchezan não quis nos receber.”

O ato contou com medidas de segurança como a demarcação de posições, uso de bambolês para evitar aproximações, máscara obrigatória e disponibilização de álcool gel. Segurança ali, naquela Zona Autônoma Temporária, garantida pelos manifestantes, mas que em suas comunidades é prejudicada pelo descaso da Prefeitura. No Quilombo dos Machado, falta água e luz constantemente, além do poder público não proporcionar nem saneamento básico. Compromete a higienização e a falta de luz compromete o ensino. Como estudar a distância se falta luz nas casas?

Poderes públicos prometem a volta as aulas para junho, mas as família que compõe a Frente Quilombola já lançaram, no outono, o manifesto “Por amor aos nossos filhas e filhos” rejeitando essa proposta. As crianças quilombolas perdem o ano, mas não frequentarão salas de aula enquanto o Covid-19 for uma ameaça real. Colocar as crianças em risco, segundo o documento, viola o artigo 227 da Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Além de violar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho por em nenhum momento os poderes públicos consultarem as comunidades afetadas sobre a questão. “Uma criança quilombola é agente importante e constitutivo de uma trama comunitária e mandá-la à escola implica em mandar um quilombo inteiro junto com ela!”, defende o manifesto.

A falta de água para higienização foi destacada pela população em situação de rua, que sofre com o sucateamento da Fundação de Assistência Social, da precarização das condições de trabalho de quem trabalha na assistência e com o fechamento dos espaços de acolhimento na cidade. Onde as pessoas em situação de rua efetuam seu isolamento? A trabalhadora da assistência social Veridiana Farias denunciou com indignação a entrega, por parte do Prefeito Marchezan Junior, do Abrigo Bom Jesus, espaço referência para o atendimento da população em situação de rua, para uma entidade religiosa através de uma OSCIP. Esta medida interrompeu um trabalho de redução de danos de longo prazo, além de submeter a população em situação de rua ao tratamento moralista da entidade que chega. Os servidores da Assistência Social foram deslocados ilegalmente, por terem prestado concurso, para outros setores.

Sandro Lemos, do Quilombo do Lemos, destacou a diferença de tratamento que a população negra recebe. “Estamos aqui para ser bem atendidos. A comunidade negra, preta, de favela chega no postão, nos hospitais e não tem os mesmos tratamentos que tem os brancos filhinhos de papai. Eles que trouxeram o Covid para cá e nós que estamos pagando a conta. Estamos aqui pelas futuras gerações quilombolas”.

O ato também se mostrou contrário ao Projeto de Lei 2633, que está em discussão na Câmara dos Deputados Federais, e que coloca em risco o Cerrado e a Amazônia, facilitando a compra e a grilagem de terras públicas. É a permissão necessária para aumentar a ofensiva sobre os guardiões da floresta, povos indígenas, quilombolas.

Para Alice Martins, da Ocupação Baronesa, é necessário a luta articulada entre os povos. “O que resta para nós povos é que a gente se una e lute, contra o racismo e contra o fascismo. E não confudamos a luta antirrascista com oportunismo, porque são os nossos corpos que são diariamente violentados e violados”.

A ofensiva contra o povo negro, população em situação de rua, indígenas se dá todo dia, através de violências diretas, como a da polícia, milícia e, no campo, capangas. Ou ainda como a negligência assassina que matou Miguel em Recife. Mas também se dá através do projeto colocado em prática pelas medidas políticas, como as expostas no texto a cima. Se você espera a revolta negra como acontece nos EUA a cada caso que vê, saiba que a Polícia do Rio de Janeiro mata em 30 dias o que a de Minnesota, estado em que George Floyd foi morto, matou em 20 anos. Que tal procurar se informar com responsabilidade sobre lutas como a de hoje e se somar na humildade? Comprometimento e sair da zona de conforto para chegar. O genocídio não vai parar apenas com a inclusão de selo ou hashtag antifascista no Facebook.

Abaixo, as demandas na íntegra presentes na carta: “Quantas notas de pesar suas secretarias ainda tolerarão assinar?”, que assinada por Frente Nacional em Defesa dos Territórios Quilombolas-RS, Quilombo Silva, Quilombo dos Alpes, Quilombo do Areal, Quilombo Fidélix, Quilombo dos Machado, Quilombo dos Flores, Quilombo Lemos, Quilombo Tradicional de Matriz Africana de PoA – Família de Ouro, CIMI SUL, Movimento Nacional da População de Rua/RS.

Reivindicações:

– Ação conjunta entre governo do estado e prefeituras: a organização e o funcionamento de “gabinetes de crise” [estadual e municipais] é urgente e precisa funcionar de forma efetiva, permitindo o aprimoramento das diretrizes, logísticas e monitoramento de informações, processamento técnico e político de problemas prioritários, processos decisórios e comunicação [traduzida em informações confiáveis e seguras, embasadas cientificamente e politicamente alicerçadas].

– Cumprimento da recomendação feita pelo Conselho Municipal de Saúde (CMS) para a criação de um comitê na Secretaria Municipal de Saúde (SMS), com a participação do CMS, universidades federais e entidades de representação dos profissionais de Saúde e de Saúde Coletiva, e a instalação de painéis públicos no site da SMS que organizem todas as informações relacionadas ao enfrentamento da pandemia, garantindo que os dados financeiros, clínicos e epidemiológicos sejam de conhecimento público e embasem as tomadas de decisão para os casos confirmados e seus contatos, com controle do isolamento. Endossamos aqui a importância do Controle Social, de representação ativa da sociedade civil e associações comunitárias, para a atualização das informações territoriais e discussões que embasarão as decisões da gestão pública.

– As negociações com provedores de serviços e equipamentos privados e suplementares, visando incluí-los em processos de regulação única e exclusiva pelo SUS em acordos que não comprometam de forma irresponsável os gastos públicos. Não apenas para caso de COVID-19 mas para qualquer caso que precisar da estrutura enquanto os leitos públicos estiverem lotados em função da pandemia. O CMS de POA orienta que as requisições de todos os serviços laboratoriais sejam feitas em plataforma única, incluindo kits de testes.

– Plano de contingência nas Unidades de Atenção Primária, com protocolos e fluxos definidos para atendimento de usuários com Covid-19 e treinamento para todos(as) trabalhadores(as).

– A realização de testagens sorológicas deve ser ampliada, potencializa as tomadas de decisão, contudo, há que se ter cuidado na aquisição de material que possua maior sensibilidade, portanto, melhor confiabilidade para se estimar os casos negativos.

– As medidas para a interdição das atividades realmente não-essenciais devem ser retomadas com maior rigor. Regular saída das pessoas às ruas evitando aglomeração desnecessárias.

– Que a política de flexibilização e retorno programado somente sejam liberados programado com o declínio constante do número de novos casos diagnosticados, pacientes internados e óbitos atribuídos ao COVID-19 durante 14 dias consecutivos, seguindo orientações do CMS.

– As medidas de reconversão industrial para a produção de insumos de proteção e equipamentos de suporte vital devem ser intensificadas de modo que não fiquemos dependentes das compras internacionais. É preciso estimular a fabricação de EPIs para os profissionais da saúde em território nacional, para que seja possível garantir uma boa distribuição. E também para equipamentos especializados necessários como os respiradores e túneis de higienização para trabalhadores(as), de acordo com as normas de padrão de qualidade, certificadas pela ANVISA.

– Investimento em tecnologias e inovação: Vincular a equipe de Atenção Básica às famílias com casos suspeitos (como é o exemplo do app que avisa a equipe para que ela não precise levar seu familiar doente em emergências, onde pode contaminar mais gente).

– Concursos públicos na área de saúde e outros mecanismos para organização de uma equipe de apoio aos profissionais que estão na linha de frente. É preciso garantir treinamento para essas equipes, para utilizar os EPIs de maneira adequada, assim como é de responsabilidade do empregador a aquisição do EPI, ele também é responsável pela capacitação dessas equipes. Não tendo esse cuidado, o número dos afastamentos vai continuar crescendo a cada dia, enfatiza.

– Formação e capacitação para profissionais da saúde em todo território gaúcho com cursos de e 20h a 40h.

– Garantia de direitos trabalhistas essenciais, como alimentação digna, descanso, transporte público seguro, EPIs eficazes e equipamentos especializados seguros para o combate ao coronavírus.

– Como ação estratégica: reforçar a vigilância epidemiológica na Atenção Básica. E ativar todos os postos e unidades de saúde e equipá-las para tanto.

– Retorno programado só depois das exigências acima contempladas e com a criação de fundo emergencial com recursos de empresários acima de Microempreendedor Individual (MEI) e Taxação de Grandes Fortunas27, para sustentar a área da saúde e todas as despesas necessárias para garantir equidade e redução de desigualdade social.

– Identificação de indivíduos, grupos e comunidades em condições de vulnerabilidade, pessoas com desgaste psíquico (estresse). Ex: vigilância em territórios quilombolas e famílias das microáreas de vigilância (regiões pauperizadas: sem água, energia elétrica, saneamento, falta de alimentos). E optar por decisões políticas que combatam essas condicionantes que intensificam as vulnerabilidades diante da pandemia.