26 de agosto de 2018, Bruno Lima Rocha
A partir de 2014 o país se viu diante de um avanço das ideias oriundas daquilo que se convencionou chamar de neoliberalismo selvagem ou ultra liberalismo. Motivos não faltariam para fazer uma lista de pessoas físicas e jurídicas que diuturnamente operam para poluir o debate político com parâmetros estadunidenses ou paradigmas absurdos como da “escola austríaca”. A sociopatia desta gente ultrapassa qualquer possibilidade de diálogo, e justo por isso, para evitar problemas legais e manter o tom da crítica, não vou me referir a nenhum instituto com pessoa jurídica no Brasil, mas às suas ideias gerais assim como uma de suas matrizes no coração do Império, talvez a baboseira mais citada. Fica subentendido do que e a quem se trata e que vistam as devidas carapuças.
O que se difunde no país é uma soma do mais nefasto individualismo – até em termos filosóficos – com a noção de que o papel do Estado como garantidor do serviço público e da ampliação dos direitos políticos, sociais, econômicos e civis, seria algo como uma heresia ou um ato autoritário. Todo esse tipo de afirmação estapafúrdia não passaria de simples bobagem se não fosse reproduzido pelos grupos de mídia em alguma escala. Uma mentira repetida mil vezes se torna uma meia verdade na mente das maiorias destreinadas na lida política e em especial no que diz respeito às medidas e instrumentos de política econômica para disputar o controle dos gigantescos recursos do Brasil.
Todos os dias a lenga-lenga volta: “toda dona de casa sabe que ela não pode ir a um supermercado e gastar mais do que recebe no salário e nem sequer ficar super endividada a ponto de comprometer seus ingressos e patrimônio”. O que parece ser uma frase razoável não passa de perigosa mentira. Uma família chefiada por alguém, homem ou mulher, não se assemelha em nada a um governo pois não pode emitir moeda, não tem poder de gerar e rolar a própria dívida, não encarcera e nem cobra tributo e menos ainda detém o monopólio da força e nem de longe administra um sistema de Justiça. Ou seja, uma família não é um governo e menos ainda um Estado. Mas, ao comparar uma “banana com um parafuso”, a propaganda neoliberal avança na mente do cidadão comum. E, ao fazer uso desta mentira já difundida para aplicar conceitos ainda mais nefastos, como na confusão entre direito e serviço “eficiente”, a população fica sem o grau de certeza necessário para rechaçar o engodo.
Se os grupos de mídia e seus “colonistas” de plantão repetem a analogia tão correta como a comparação de uma fruta com um parafuso (a dona de casa com o Estado), a ladainha dos porta-vozes dos institutos, os chamados “empreendedores comunicacionais” treinados pela Rede Atlas (atlasnetowrk.org) ou por seus reprodutores, financiados pelos Irmão Koch (charleskochfoundation.org), boa parte destes fazendo cursos de “liderança” em cursinhos de verão na Georgetown University, dentre outras formas de influenciar a soberania da América Latina, é outra. O palavrório preferido é o tal “índice de liberdade econômica”, uma indicação de quanto menos regulados são os mercados internos de alguns países, obviamente sem entrar no mérito dos direitos políticos. A origem desta célula morta que se reproduz em metástase é a Heritage Foundation (heritage.org), um think tank conservador criado em 1972 justo no período do auge da Cruzada Conservadora de Richard Nixon (sim, ele próprio, também conhecido à época como “Dick Vigarista”, tal como o personagem dos desenhos). O índice se encontra no domínio heritage.org/index/e é um indicador repetido como mantra pelo conjunto de ultra liberais, liberais e liberais conservadores. O mesmo besteirol é repetido pelo Fraser Institute (fraserinstitute.org) cuja missão na Terra é extinguir as políticas sociais no Canadá, país cujos índices de Bem Estar se comparam com os da Europa, ao contrário dos EUA. A difusão é tamanha que no ranking da Forbes em 2018, a Heritage é o mais citado em mídias sociais que circulam nos Estados Unidos, ganhando do também conservador embora mais respeitável, Brookings Institution (brookings.edu).
Recentemente tive a tenebrosa experiência de dividir um debate televisivo com dois fieis adeptos deste peculiar sistema de crença. O nível de absurdo sociológico e econômico é surreal. O “consultor e experto empresarial” me disse que: “Keynes era socialista, mas também era fascista”; “quase não existe capitalismo no mundo, o Brasil é parcialmente socialista e mesmo os EUA tem uma economia mista”; “tu – eu – confundes ‘socialismo’ com ‘comunismo’ e que pela falência deste último, o denominamos de ‘totalitarismo’”. Era daí para baixo, e sem pudor algum e suponho que reputação intelectual alguma a ser defendida. Ao contrário. Quanto mais estapafúrdias forem as afirmações, mais adeptos sem noção se sentirão confortáveis ao repetir a estupidez. Ou seja, qualquer semelhança com a Alt-Right e outras aberrações que garantiram a vitória eleitoral de Donald Trump nos EUA não se trata de coincidência alguma, justo pelo contrário. É intencional, seja por ilusão coletiva ou razão cínica expressa por convictos mentecaptos.
Repito, já não se trata mais “apenas” do jogo da mídia “econômica”, que escuta como fonte especializada consultores interessados na jogatina ou defensores da privatização. O perigo ganha proporção quando para além das mentiras midiáticas, vociferadas pelos defensores da especulação financeira e do “tal do mercado de capitais”, a noção do individualismo como fim último do ser humano é espalhada pelas versões brasileiras dos institutos financiados por grandes empresas. Para piorar, quando tais ideias reacionárias e conservadoras adquirem nova roupagem, se propagam pela internet como metástase avançada e terminam por ocupar o imaginário de auto realização de jovens até bem pouco tempo atrás encantados com o debate político de duas patas: uma linguagem da cultura nerd e os mais nefastos preconceitos para quebrar a suposta hegemonia das esquerdas nas áreas de humanidades nos centros de educação.
A ameaça ganhou forma política, entra nos discursos de várias candidaturas e chega a ter um “herói social” no pleito de 2018: “o especulador esclarecido”, conformado por candidatos ou supostos gurus econômicos, todos enriquecidos com fundos de renda de fixa e literalmente mamando no Tesouro através das aplicações financeiras. São a versão no século XXI dos Chicago Boys brasileiros, raposas querendo ser gestoras do galinheiro, literalmente. Diante disso, todo cuidado é pouco, em especial com a linha chilena.
Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em economia política, doutor e mestre em ciência política (pela UFRGS), graduado em jornalismo (UFRJ), professor de relações internacionais, ciência política e jornalismo. (estrategiaeanaliseblog.com / blimarocha@gmail.com)