Desde que a pandemia chegou ao país (em março), os trabalhadores e trabalhadoras da educação da cidade de Maricá passam por dilemas muito similares aos que milhares de educadores do país vêm passando. Creio que muitos desses dilemas servem para pensarmos o debate da educação remota de maneira ampla. Já que em todo o país se multiplicam plataformas remotas de ensino, que nada mais representam, do que os interesses de conglomerados privados, ansiosos por abocanhar uma fatia do orçamento público da educação brasileira, usando o argumento da “modernização do ensino”.
O ensino remoto, como colocado por inúmeros materiais críticos ao tema, é uma forma ainda mais precarizada de ensino a distância, já que possui condições muito mais adversas aos educadores e alunos. Algumas entidades da categoria da educação, inclusive, recusam-se a utilizar o termo “ensino remoto”, tendo em vista que a precariedade mediada pelas plataformas online é tão explícita, que o termo mais adequado é “interação remota”.
No caso de Maricá, a plataforma escolhida foi a Hub Educacional, uma suposta “ferramenta educacional” que se pretende uma “solução inovadora para instituições de ensino” e que centraliza as “soluções” educativas das chamadas edtechs. O nome é bonito, mas “edtechs” são apenas tecnologias voltadas à educação, desenvolvidas por empresas que possuem, obviamente, o interesse de fazer lucro em cima da educação pública. O fundo do discurso é o discurso neoliberal, que o problema da educação não são suas condições estruturais, mas a suposta “falta de tecnologia” adequada ao “mundo contemporâneo”. Mesmo discurso que ajudou a precarizar a saúde, a educação, o trabalho e subsidiou ideologicamente o fim dos direitos trabalhistas.
Em Maricá, a escolha da Hub Educacional pouco levou em conta a realidade da maioria dos alunos da cidade. A plataforma funciona muito mal nos celulares e a esmagadora maioria dos alunos que possuem acesso à internet (geralmente precária) utiliza os smartphones para acessá-la. Ao lidar com a plataforma, em específico a sua “solução” Hub Educacional, que é a principal, percebe-se que lidamos com um sistema arcaico, complexo e que em funcionalidades simples (como jogar um arquivo ou procurar um material), apresenta grandes dificuldades para alunos e professores. A interação com a plataforma é seriamente prejudicada com menus e conteúdos confusos e pouco intuitivos, que representam pouco cuidado do desenvolvedor com o software. Como dito por um professor numa reunião de uma unidade escolar… “Parece que estamos usando uma versão piorada do orkut”.
Para completar, os índices de acesso em geral pelo que indica as experiências dos educadores – são baixíssimos. A prefeitura, mesmo pressionada pelo sindicato, que rejeita o uso da plataforma, não revelou até agora a quantidade de alunos que acessam a plataforma. Em turmas de 30, 31 alunos, é comum dois ou três terem acessado regularmente as tarefas postadas pelos educadores.
Tal fato fez com que professores e professoras continuamente questionassem a utilidade da plataforma em suas unidades escolares e em assembleias da categoria. E a resposta das direções das escolas, seguindo as ordens da secretaria da educação é em geral a mesma: postem as tarefas para controle. Tal questão é uma grande contradição, tendo em vista que já existem controles específicos para as tarefas que são produzidas (entraremos nesse tema adiante). Qual é o sentido de usar uma suposta “tecnologia inovadora”, que não é acessada pela totalidade dos alunos? A plataforma é uma “tecnologia inovadora” ou apenas um instrumento de disciplinamento e controle do trabalho docente?
Em tese, as unidades escolares poderiam usufruir de sua autonomia para se adaptar à sua realidade em meio a pandemia. Nesse sentido, cada escola optou por soluções próprias para lidar com a educação em tempos de pandemia, ainda que a plataforma (completamente ineficaz) seguisse como uma imposição. Surgiram soluções que tentaram dar conta da realidade escolar em tempos de pandemia. O grande problema é que essas soluções foram escolhidas com assimetria do poder de decisão. Apesar de indicativo do sindicato da categoria e vontade dos professores, as direções de escola na cidade de Maricá não são eleitas democraticamente pela comunidade escolar, mas indicadas. Tendo em vista que existem direções mais ou menos democráticas, muitas soluções foram decididas democraticamente e outras, “enfiadas goela abaixo”, como diz o ditado popular, sem o poder de decisão dos professores de sua própria ferramenta escolar. Apesar da LDB indicar que as decisões da educação sejam tomadas coletivamente, ouvindo educadores, pais e a comunidade escolar em geral, o que se vê é pouca democracia na relação entre Secretaria de Educação e trabalhadores da educação municipal de Maricá, com as decisões sendo tomadas sempre de cima para baixo, sem consulta à categoria.
Tal questão aprofunda o estresse, aumenta as possibilidades de assédio moral e aliena o docente da sua autonomia pedagógica. E surgiram, assim, modelos ainda mais precarizados de “ensino” remoto, com supostas “aulas” pelo whatsapp, expondo a privacidade dos docentes, estabelecendo relações artificiais e precárias entre alunos e professores e impondo uma alta taxa de estresse nos educadores.
São comuns os relatos de educadores que tiveram de trocar, comprar ou atualizar seus computadores e celulares (pagando obviamente do próprio bolso), tendo em vista que num único dia de “aula” por whatsapp, recebem milhares de mensagens, que lotam seus equipamentos. Há uma questão importante: há diversos colegas educadores, que reconhecem os problemas do ensino remoto, mas acabam agindo de maneira passiva ou conformista, aceitando essas questões como se fossem naturais ou próprias de um tempo que exige soluções extraordinárias.
Incorporando a ideologia da vocação, do sacrifício docente e do esforço extraordinário, acabam por aceitar condições rebaixadas e precarizadas no seu ambiente de trabalho sem questionar. Sabemos que houve uma pressão muito grande de parte da sociedade pelo retorno normalizado ao ambiente de trabalho, mesmo com milhares de vidas sendo ceifadas durante a pandemia, que já vitimou 150 mil pessoas no país e em Maricá, 135 pessoas. Empresários e políticos reacionários pressionaram para a “normalização” da barbárie e impuseram o fim do isolamento social. No caso de Maricá, apesar da cidade ter tomado medidas efetivas no início da pandemia, essa pressão se revelou eficaz e é comum ver bares e praias lotadas, sem qualquer tipo de fiscalização e protocolo de distanciamento social.
Tendo em vista que a maioria da população brasileira não conseguiu usufruir desse DIREITO logo no início da pandemia, o trabalhador da educação incorporou esse direito de isolamento (em condições geralmente muito precárias) como um privilégio. E com a pressão do empresariado, esses “privilégios” têm de ser “justificados”. Entra aí a incorporação da ideologia de martírio e sacrifício docente, que faz com que os professores aceitem condições péssimas de trabalho remoto que fazem um verdadeiro estrago na saúde mental docente. Essa ideologia de “trabalho docente a qualquer custo” (ou aprovação dos alunos a qualquer custo já que vão “perder” o ano…) e trabalhe com o que se “tem” é a incorporação da subjetividade neoliberal pela categoria.
Em defesa da vida da família de alunos e trabalhadores da educação e do não retorno das aulas presenciais, professores em todo território nacional são obrigados a manterem seu isolamento por longos meses, sob condições de trabalho e de vida em maioria degradantes. Além disso, setores reacionários da sociedade tocam uma campanha sub-repitícia de difamação e ataque aos profissionais da educação no país, afirmando que os professores “não querem trabalhar”, romantizando a situação precarizada de home-office, com condições e estruturas inadequadas de trabalho que são geralmente mantidas pelos próprios trabalhadores (e não pelos patrões que transferem o custo do escritório para o trabalhador). Setores de extrema-direita (a maioria com fins eleitorais) atacam os profissionais docentes e os sindicatos com um discurso moral que os considera “vagabundos”, quando na realidade esses profissionais estão trabalhando mais e em condições piores. É natural que a categoria reaja a esses ataques, se extenuando, se martirizando e aceitando qualquer pressão por produtividade ou ferramenta precária como “parte deste processo”.
Tais ferramentas certamente tentarão ser implantadas para além do período da pandemia. Lembremos que no saber pedagógico, não existe ferramenta neutra. A diferença é que em sala de aula e a partir da construção coletiva, é possível construir ferramentas pedagógicas afinadas com o que os professores desejam. O uso obrigatório e indiscriminado de uma plataforma online já possui um determinado método, objetivo e propostas pedagógicas corporificadas num software, que não é possível de ser modificado, não foi discutido pelos educadores e que visivelmente não cumpre seu papel. Além disso, quem produziu o aplicativo? Quem definiu sua funcionalidade, seus objetivos, seu método de avaliação?
Paulo Freire dizia que “Não existe tal coisa como um processo de educação neutra. Educação ou funciona como um instrumento que é usado para facilitar a integração das gerações na lógica do atual sistema e trazer conformidade com ele, ou ela se torna a “prática da liberdade””. Em relação às tecnologias de ensino remoto, parece nítido que a educação segue a lógica de integração das gerações a etapa neoliberal do capitalismo. Cabe aos educadores (de Maricá e do restante do país) fortalecerem as instâncias sindicais, debatendo junto a outros colegas esses problemas e apontarem soluções coletivas, onde a categoria possa realmente ter voz e participar das elaborações coletivas da educação.
Por Trabalhador Municipal da Educação de Maricá (membro da pró-Resistência Popular Sindical/RJ) e militante de base do movimento sindical da educação municipal de Maricá
* O autor preferiu omitir seu nome para evitar eventuais represálias ou assédio moral.