Por Aline Corrêa
“Ainda é possível morrer por falta de comida, mas não por falta de conteúdo.” (Evgeny Morozov)
Navegando pelas notícias sobre o mundo. Sem querer esbarrei no Youtube e acabei parando no perfil da Itaipu Binacional, pois o canal estava entrando ao vivo com a notícia do primeiro bairro inteligente do Brasil, na região da Vila A, em Foz do Iguaçu, no estado do Paraná. O “Programa Vila A Inteligente”, estava sendo lançado por um convênio interinstitucional e contou com a presença do General Joaquim Silva e Luna, Diretor Geral Brasileiro de Itaipu Binacional, do General Eduardo Garrido, Diretor Superintendente do Parque Tecnológico de Itaipu (PTI), do Igor Calvet, Presidente da ABDI e, por último, representando a Prefeitura de Foz do Iguaçu, o vice-prefeito Nilton Bobato. Estiveram presentes também o Alexandre Ramagem Rodrigues, Presidente da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e o Mário Camargo, presidente do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social de Foz do Iguaçu (Codefoz).
Na inauguração do projeto foram exaltados uma série de benefícios advindos do “Programa Vila A Inteligente” que tem a previsão de duração de três anos (36 meses). Entre os pontos positivos, foi destacado que o Programa pode: “contribuir com a qualidade de vida do cidadão, desenvolvendo tecnologias, gerando negócios e melhorando o acesso e disponibilidade dos serviços públicos. Empreendedorismo capaz de gerar empregos e renda, incentivando startups e empresas de base tecnológica em um ambiente de teste de escala real que servirá de modelo de replicação em outros bairros e municípios”.
Na primeira fase do Programa, as primeira tecnologias a serem instaladas na região da Vila A, destacam-se quatro grandes eixos de ação: 1- a segurança pública (luminárias inteligentes, reconhecimento facial, monitoramento de veículos por placa, integração de dados de segurança); 2- a mobilidade urbana (semáforos inteligente, pontos de ônibus inteligentes e estacionamento inteligente); 3- o meio ambiente (monitoramento climático, monitoramento ambiental, eficiência energética); 4- e a integração com a comunidade (app multifinalitário e rede de wi-fi pública).
O “Programa Vila A inteligente” não começou do nada, pois desde o final de 2018 existe um Laboratório Vivo de Cidades Inteligentes dentro do PTI, um ambiente que reúne tecnologias aplicáveis na promoção de ambientes urbanos seguros e controlados. Uma das iniciativas já implementadas por esse laboratório é o Fronteira Tech que foi inaugurado em Dezembro de 2019 e que atualmente realiza o controle na Ponte da Amizade (Brasil-Paraguai). A iniciativa do “Programa Vila A Inteligente” foi viabilizada pela prefeitura de Foz do Iguaçu, em 23 de Junho de 2020, através do Decreto 28.244, instituindo o “Programa Sandbox – Foz do Iguaçu”. Portanto, sem consultas prévias aos parlamentares, a prefeitura instituiu o município de Foz de Iguaçu como uma cidade para desenvolver ambientes experimentais de inovação científica, tecnológica e empreendedora, sob o formato de banco de testes regulatórios.
O Programa vai contar com o financiamento inicial de cerca de R$ 4 milhões, por parte da Itaipu Binacional. Como também conta com um investimento de cerca R$ 6 milhões por parte da ABDI – totalizando um montante de pelo menos R$ 10 milhões. A notícia que para uma parcela significativa da população pode soar como uma novidade para se aplaudir de pé e que, provavelmente, será uma mudança aderida sem a devida reflexão crítica sobre o tema.
Não é exatamente com entusiasmo exagerado que devemos receber essa notícia. Pois existe uma série de questões complexas a respeito da realidade anormal advinda das crises – sanitária, social, econômica e financeira – aceleradas pela pandemia da Covid-19: o consumo desenfreado das tecnologias e a intensa ascensão dos dados em nossas vidas. Nesse sentido, uma pergunta básica que todos nós deveríamos estar fazendo é: os espaços urbanos inteligentes representam uma ameaça as democracias?
Apesar do mundo digital ser visto pela maior parte das pessoas como inofensivo e até mesmo invisível em nosso cotidiano, cada vez mais fica notável como essas plataformas tecnológicas se fortalecem como um imenso bloco de poder fundamentado em interesses de um mercado pouco transparente e majoritariamente engajado em projetos políticos ultraconservadores de dominação – tendo em vista que desde a Guerra Fria quem domina as tecnologias mais avançadas é quem também domina o mundo.
Em meio a esse confuso emaranhado de geopolítica e consumismo desenfreado, aliados a essas inúmeras crises no Brasil e no mundo é que partem algumas das indagações aqui levantadas sobre esses novos programas “espaços urbanos inteligentes”. Na análise de Edward J. Snowden sobre a pandemia, em uma entrevista dada ao canal da Vice, ele aponta o atual momento como um importante divisor na história da humanidade. Ressaltando a urgência em começarmos a refletir sobre como as elites econômicas e os governantes nos mais diversos países estão aproveitando da situação da Covid-19 para avançar na implantação do que Edward definiu como “arquitetura da opressão”.
Estamos passando por um momento em que vemos o autoritarismo se espalhar à medida em que se multiplicam os decretos e as leis de emergência – não apenas planos de contingenciamento, proliferam também os cortes orçamentários em diversos setores, como os que houveram na saúde e na ciência, que atingem todas as regiões do país. Segundo Snowden quando começarmos a olhar para aonde tudo isso está nos levando devemos fazer essas observações a partir de reflexões, sobretudo, das situações históricas aonde a humanidade já esteve. Pois à medida em que sacrificamos alguns dos direitos básicos, bem como abrimos mão de uma regulamentação séria e efetiva do uso e da privacidade dos nossos dados, estamos sacrificando também a nossa capacidade para frear a queda em um mundo totalmente neoliberal e muito menos livre.
O lado mais sombrio desse tipo de uso do poder – tecnológico, político e econômico – não é só porque ele ganha força em meio às crises, mas porque esse “sistema de opressão” nunca acaba e aos poucos o controle sobre as nossas vidas e a invasão da nossa privacidade através do uso abusivo dos nossos dados vão sendo normalizados pela população. É exatamente esse o contexto que vivemos no Brasil, ponto de retorno da notícia que impulsiona esse exercício reflexivo: o “Programa Vila A Inteligente”.
O projeto dos espaços urbanos inteligentes vem sendo discutido no Brasil e já é implantado em outras partes do mundo como, por exemplo, na China e na Coréia do Sul. Países que vivem sob governos com projetos políticos extremamente complexos e hipercontroladores. No lançamento do Programa em Foz, foi notável como o convênio (Prefeitura, ABID, Itaipu Binacional, PTI) e também os apoiadores (ABIN E Codefoz) falam dos pontos positivos dos avanços tecnológicos e do uso dos dados dos cidadãos que serão usados para melhorar a qualidade de vida das pessoas, para controlar o clima, para aumentar a segurança e a mobilidade da população.
E o que a princípio pode parecer até uma boa ideia, com inúmeros benefícios presumíveis tem, no entanto, um alto custo: a invasão da privacidade da população e o enfraquecimento das instituições públicas. Percebemos o quão grave é essa lógica corporativista (startups), pois além de presumir uma base privatista de controle dos nossos direitos, desejos, pulsões, vidas e corpos é uma lógica que é diretamente refletida nos setores de base da sociedade e em instituições sociais que já possuem realidades orçamentárias baixas ou mesmo precárias.
Como as pessoas progressistas estão se preparando para as discussões sobre o tema do avanço das tecnologias e do uso dos dados que são gerados e concentrados nas mãos de poucas mas poderosas empresas e startups? Tendo em vista não só que o Observatório Brasileiro de Cidades Inteligentes, tem sede em São Francisco (EUA), mas também quais são os sentidos e os usos geopolíticos que estamos depositando nas mãos dessas plataformas de tecnologias que estão à serviço dos interesses econômicos de uma elite nacional e do capital internacionais/estrangeiros? Como lidar com essa volatilidade da moral crítica trazida pelo consumo desenfreado das tecnologias, redes sociais e internet e o como está sendo regulamentado o uso dos nossos dados? Como o Estado pode fazer para melhor regular essas empresas e startups?
Cada vez mais a distopia parece nos afogar em um mundo em que uma parcela significativa da população abre mão de reivindicar por políticas públicas efetivas, para entrar na realidade estéril em que os laços e os sentimentos de solidariedade se desfazem ou se resumem em plataformas de financiamento coletivo para ajudar seletivamente uma pessoa ou um grupo minoritário durante um curto período ou em apenas uma determinada situação específica. Definitivamente, estamos entrando na era do “mercado único digital”.
A economia compartilhada, a desregulamentação e a livre circulação de dados são apenas as pontas mais visíveis nesse grande iceberg que representa a visão de mundo em que a ascensão dos dados destrói as instituições reguladoras e democráticas, reconstruindo a agenda política e ideológica do capitalismo e do imperialismo neoliberais. E reconfigurando todas as nossas vidas em “um sistema desprovido de qualquer imaginação institucional e política – no qual uma combinação de hackers, empreendedores e investidores de risco é a resposta-padrão para todos os problemas sociais” (Evgeny Morozov).
Devemos estudar, refletir, discutir de forma séria e madura sobre os avanços tecnológicos e os rumos políticos e econômicos que estão financiando essa guinada à uma distopia digital mundial sem precedentes na história da humanidade. Exatamente por isso devemos tomar alguns cuidados para realizar debates de forma mais ampla junto a população, não só porque corremos os riscos do debate ser rechaçado por uma parcela significativa das pessoas, como a crítica se torna inócua ou esvaziada. Posicionar a partir de uma perspectiva progressista radical não é ser contra as tecnologias em si, é se posicionar contra o sistema de opressão gestado por essa visão de mundo capitalista, imperialista e neoliberal.