* Texto escrito por Antonio Ade e Rodrigo Mendes
Era uma vez na América é um filme de 1984 dirigido por Sergio Leone e encerra sua trilogia sobre os Estados Unidos, que começa com Era uma vez no oeste (1960), seguida por Quando explode a vingança (1972). O longa se passa em três épocas distintas (início do século 20, quando os personagens são crianças; nos anos 1920/30 durante a lei seca; e já na segunda metade do século (35 anos depois), quando Noodles e Max aparentam ter uns cinquenta anos). Estes são os protagonistas – em especial Noodles, interpretado por Robert De Niro – que compõe o núcleo principal do enredo junto a outros. A história é de um grupo de crianças de ascendência judaica de um bairro de Nova York que no início do século 20 cometem pequenos crimes. Todos ali vivem em situação de pobreza e/ou têm algum problema familiar. A exceção entre os amigos é Fat Moe, que não pratica crimes pois trabalha na padaria que seu pai é dono. A narrativa acompanha a trajetória de Noodles nos três momentos temporais do filme em que veremos amizade, traição, ambição e um cotidiano pautado sempre pela violência.
Um dos aspectos dessa violência se mostra, ao longo da trama, na luta permanente no interior do gangsterismo, da máfia, da política burguesa, ou de empreendimentos capitalistas. Emergem daí relações frágeis de companheirismo, que se estabelecem em coletividades marcadas pela perspectiva do lucro. A traição perpetrada por Max à Noodles nada mais é que a ética burguesa trabalhando em prol da vitória do indivíduo em detrimento do grupo. A ficção tem a liberdade de ampliar a visão de conflitos intrínsecos à sociedade em que se vive, e no caso do filme de Sergio Leone, se dá o zoom sobre algo comum e corrente no seio das diversas corporações capitalistas, partidos políticos e os chamados empreendimentos “ilegais”: o indivíduo usando de todos os meios para se sobressair frente a sua coletividade.
Além disso, cabe destacar a corrupção como parte do funcionamento do sistema, que vai de cima a baixo em uma sociedade que gira em torno do lucro, desde o policial mais bunda mole até o político mais destacado, passando pelo capitalista de maior sucesso. É uma espécie de representação do funcionamento dos EUA na primeira metade do século XX, mas que tem validade para todos os lugares que o capitalismo deu certo, com as devidas mediações.
Essa violência, que perpassa todas as relações sociais no filme, decorre de uma desigualdade social profunda que gera o gangsterismo. No filme, isso se mostra, pelas imagens, nos tons escuros que o diretor emprega, certamente influenciado pela fotografia de Gordon Willis em O poderoso chefão, clássico filme de máfia de Coppola. Os silêncios e os olhares, muitas vezes capturados por closes, injetam tensão e suspense na trama, demonstrando que a confiança é atributo raro àqueles personagens. Há, na estrutura de filmes de máfia, como que um véu que encobre o enredo. Nunca sabemos ao certo o que está passado, o que estão pensando, qual o plano a ser tramado. Isso é a representação da desconfiança inerente ao gangsterismo na forma do filme.
Um elemento importante na estética de Era uma vez na América é a passagem do tempo. Certamente esse elemento tão bem executado por Leone diz respeito a um aspecto essencial no longa, indicando possivelmente a circularidade da vida dentro da máfia e, por conseguinte, das violências que gera. A estrutura do filme é de flash back, então vamos e voltamos do ponto presente da narrativa, seja para elucidar um fato, seja para contar como algo se originou e assim por diante. Já na primeira sequência do longa vemos a maestria com que Leone junta os tempos: da casa onde vão para matá-lo à tortura de Moe, que leva ao restaurante chinês onde Noodle se encontra. Todas essas cenas são ligadas pelo som do telefone, que diz respeito a outro tempo da narrativa (quando Noodles liga para a polícia para entregar Max). A construção da montagem e da mixagem de som é muito precisa e encadeia as cenas de forma magistral. Em outros momentos ocorre o mesmo, e damos como exemplo a cena em que Max, já velho, entra no restaurante de Fat Moe e vai ao banheiro, de onde espiava, quando criança, a irmã de seu amigo praticar ballet. A câmera sobe e para no buraco na parede e há um corte, mudando a perspectiva do buraco, agora do outro lado e com Noodles criança. Essas passagens acontecem durante o filme todo e além de bem feitas, contribuem para o desenrolar da narrativa.
Era uma vez na América é, por certo, uma obra-prima do cinema, certamente um dos melhores de Sergio Leone. O diretor constrói uma representação muito interessante de experiências dentro do gangsterismo no século 20 estadunidense, com uma boa história e boa direção.