“Educação e a memória são o que vai fortalecer essa luta”

Entrevista com Marisol Vega sobre as lutas no Chile após a explosão social de 2019i

Por Coletivo de Educação Popular Flor de Maio

A rebelião popular de outubro de 2019 ocorrida no Chile – e ligada a uma onda de mobilizações em nosso continente – foi uma convergência de lutas que tiveram o modelo neoliberal que impera no país desde os anos 1970 como maior alvo. De lá pra cá, o estallido social (explosão social) encontrou, além da potencialidade da construção de outras relações e experiências de luta, muitos desafios e contenções de sua radicalidade, especialmente nos impactos da constituinte, da pandemia e da eleição que colocou Gabriel Boric na presidência chilena.

Para falar mais sobre a situação atual do Chile, o Coletivo de Educação Popular Flor de Maio, de Hortolândia/SP, entrevistou em abril de 2022 a Marisol Vega, neta de detido desaparecido, militante do Partido Comunista do Chile por cerca de 30 anos e hoje atuando em diversas frentes, dos direitos humanos, da memória e justiça, do feminismo, das imigrantes e dos presos políticos da explosão social.

Esta é a primeira de uma série de entrevistas do projeto Memórias das Ditadurasii, organizado pelo Coletivo de Educação Popular Flor de Maio, que atua na cidade de Hortolândia/SP.

FdM – Quem é você? Em suas próprias palavras, quem é Marisol Vega?

MV – Meu nome é Marisol Vega, sou neta de um detido desaparecido, pertenço à Agrupación de Familiares de Detenidos Desaparecidos (Associação de Familiares de Detidos Desaparecidos), onde trabalho ativamente. Eu também trabalho em direitos humanos, sou zeladora de um memorial, o principal memorial aqui no Chile, o Memorial del Detenido Desaparecido y del Ejecutado Político (Memorial do Detido Desaparecido e do Executado Político), que fica na zona norte de Santiago, no Cementerio General (Cemitério Geral). Trabalho muito no meio social no sentido de que trabalho com os presos políticos da explosão social. Também trabalho com coordenadorasiii feministas e sou uma defensora dos direitos humanos.

Marisol Vega em frente ao Memorial del Detenido Desaparecido y del Ejecutado Político, no Cementerio General de Santiago do Chile.

FdM – Se quiser, fale um pouco sobre sua militância e trajetória durante os anos da ditadura. Como começou sua militância?

MV – Minha militância começou na ditadura. Meu avô, Julio Vega, foi um detido desaparecido. Ele era um líder sindical e também pertencia ao Partido Comunista quando ele desapareceu, quando a DINAiv o sequestrou em 16 de agosto de 1976. Em 1973, por conta do golpe de Estado, o perseguiram e ele conseguiu fugir com meu pai até a cordilheira. Aí ele retornou para começar a organizar, já que todas as organizações da zona norte de Santiago haviam desaparecido, a militância. E meu avô era uma pessoa que conhecia muitos lugares, muitos setores, então mandaram buscá-lo em 1975. Em 1976, eles desapareceram novamente com o rastro de militância orgânica que havia sido formada a partir do Partido Comunista aqui no norte de Santiago.

Portanto, daí em diante começa a rebeldia. Primeiro em uma busca: a busca pelo meu avô, que também foi a pessoa que me criou. E aos 11 anos comecei a militar como comunista [no Partido] e também estava ligada à Agrupación de Familiares de Detenidos Desaparecidos, da qual sou membro até hoje. Foi aí que comecei essa militância até cerca de 15 anos atrás, quando decidi deixar o Partido Comunista, mas continuei trabalhando nesse tecido social, como pessoa independente. A partir de então, trabalhei na clandestinidade por vários anos e com a explosão social comecei a trabalhar mais abertamente. Antes era um trabalho mais submerso, em nível local e também em nível nacional.

FdM – E por que a explosão social iniciada em outubro de 2019 foi o momento de passar da atuação mais clandestina para uma atuação mais aberta?

MV – Porque já havia deixado de militar no Partido Comunista. E o Partido não precisava mais desse trabalho. Foram 30 anos imersos no trabalho clandestino. Quando veio essa explosão, eu seguia trabalhando na Agrupación de Familiares de Detenidos Desaparecidos. Quando ela chega, a primeira coisa que se pensa é: “Qual é a necessidade do povo?”. A necessidade do povo sempre foi, antes de tudo, a mais física: comida. Portanto, começamos com as ollas comunesv, que foram formadas em diferentes partes. E aí eu comecei a me organizar.

Antes ou junto com isso, houve um boom do feminismo. Não sei se foi antes ou depois dessa explosão, mas foi mais ou menos na mesma época que se instala a discussão do feminismo no Chile fortemente. Digo que é um boom porque na realidade há pessoas que são novas na discussão, porém para algumas é algo que carregaram em toda sua vida. Começam a haver coordenadoras feministas em todos os lugares e começam a haver ollas comunes que nascem de organizações feministas, assim como outras de assembleias, conselhos ou associações de bairro, de diferentes lugares e organizações. Essas assembleias nasceram após a explosão social, por diferentes grupos de vizinhos que querem mudar a constituição.

Além disso, trabalho com violência doméstica há muito tempo e isso me liga à questão das feministas. Trabalho há mais de 20 anos com mulheres que sofrem violência doméstica. Então, por meio desse acompanhamento, começo a me vincular ao feminismo nessa perspectiva e a trabalhar como coordenadora. Eu ajudo a ensiná-las a trabalhar [contra a violência doméstica], porque o patriarcado está mais forte do que nunca em todo o Chile, é muito difícil. Portanto, eu precisava fazer algo que me ligasse mais às feministas. Essas mulheres [que sofrem com essas violências] também devem atuar como coordenadoras feministas.

E daí surge também a possibilidade de atuar como coordenadora de apoio aos presos políticos e seus familiares. Também me ponho a trabalhar com os companheiros e a organizar coordenadoras para que possam se vincular a esse trabalho, a esse tecido. Temos que enriquecer esse tecido comunitário, né?

FdM – Como alguém com sua trajetória dentro da militância de esquerda chilena viu o processo dessa explosão naquele momento? Qual era a sua visão do que estava acontecendo?

MV – Bem, quando começa, era para mim algo que eu esperava. Quando você trabalha a vida inteira nisso, percebe que algo vai acontecer, em algum momento. Fiquei surpresa por [na época] ainda não ter acontecido, demorou muito tempo. Mas quando veio a explosão social, para mim foi por um lado felicidade, porque meu povo finalmente estava acordando. Finalmente havia uma geração que não tinha mais medo. A ditadura enraizou o terror no coração de nosso país com muita força e vieram muitas gerações que vivemos com esse terror.

No entanto, como eu estava dizendo, eu sabia que em algum momento isso iria acontecer. Tinha que vir alguma geração sem esse temor. E aí veio, né? Sempre disse que a juventude é um tesouro divino. A juventude, a de vocês de hoje em dia, é uma juventude rebelde, é uma juventude com muita vontade de viver, com muito ímpeto. Com muita rebeldia também e, como mencionei antes, com muitas preocupações. Portanto, quando esse garotinho pula a catraca do metrô e o prendem e todas essas criancinhas começam a pular a catraca, começa-se a pensar no que está acontecendo em nosso país: éramos uma panela de pressão que a qualquer momento estouraria a tampa.

Achei que isso ia durar mais. Hoje em dia o movimento está muito adormecido. Não porque as pessoas estão cansadas, não é isso. É porque aqui no Chile a direita é muito forte, eles conhecem muito bem o seu trabalho. É muito fácil para eles nos deter. Somos nós, o povo, que temos que aprender muitíssimo mais. Fazer um trabalho com muito mais união, acreditar uns nos outros. Isso ainda está faltando. Acredito que é a chave para que possamos ter sucesso e fazer essa explosão ou qualquer outra. ou em uma revolução futura, que possa vir. Eu sinto que a primeira coisa é isso, confiar em nossas habilidades, confiar em nós mesmos, é um trabalho que vai ter que ser feito daqui para frente, muito forte.

Hoje a credibilidade dos políticos aqui está no chão e é muito questionada. Qualquer pessoa que nasce como dirigente [político], seja ou não de uma poblaciónvi, está sendo muitíssimo questionado, e justamente por isso: a classe política perde credibilidade e [também] o líder social, o líder político em todos os sentidos.

FdM – Para onde está apontando o movimento da explosão social?

MV – Acho que são poucas as organizações fazendo coisas, mas o que está sendo feito é reafirmar. Por isso, acho que mais do que quantidade, aponta para a qualidade.

Mas também está apontando para nos aquietar muito mais. Porque vivemos um processo em que o presidente que elegemos foi por necessidade, porque ele não é eleito com a maioria dos votos pelo programa que escolheu, nem pela consequência dele. Boric é filho de um empresário. Boric aponta para a social-democracia, como na Europa. Uma grande parte do povo não queria isso, quer outra coisa.

FdM – Continuando com a questão do governo de Boric: você estava falando de união, da importância de não brigarmos entre nós mesmos. Na sua visão, até onde podemos fazer alianças? Com quem?

MV – Até onde sua consciência permitir. Quando você trabalha em unidade, você tem que trabalhar muito a tolerância. Evidente, falamos de quando nós nos unimos tendo algo em comum, tem que existir um norte comum, né? Portanto, com a direita não vamos nos juntar nunca. Companheiro, é a direita quem levanta a bota para apenas nos esmagar. Enquanto formos povo, podemos nos unir. No entanto, há o povo que faz o jogo dos empresários, à direita.

Acho que, de repente, a gente tem que conseguir tirar as coisas boas de algumas pessoas, de algumas coletividades e trabalhar com isso.

Agora, você tem que ter muito cuidado, tem que ser exercida a vigilância revolucionária. Não é fácil. Não é fácil trabalhar com todo mundo. Também não é fácil exercer a vigilância revolucionária, porque você também tende a vigiar seu companheiro. Não se trata disso. Você tem que vigiar a si mesmo e o resto não vai além do que foi proposto, de não estar jogando o jogo da direita, de não estar jogando o jogo dos empresários. É por isso que eu estava lhe dizendo que é preciso exercer a aliança até que a consciência permita. A consciência é o que nos diz até onde podemos ir, o que não podemos permitir, objetivamente falando.

FdM – Durante a explosão social muitas coisas aconteceram, entre elas, mobilizações nas ruas cantando as canções de Víctor Jara, Inti Illimani e outras referências da Unidade Popular. Existe alguma relação entre este momento a partir de 2019 com o que aconteceu no Chile nos anos 60 e 70?

MV – Sim e não, porque essa explosão social não aparece sozinha, vem de antes. Como se costuma dizer: “Não são trinta pesos, são trinta anos”. Refere-se aos 30 anos após o fim da ditadura, e ao que sobrou e, portanto, está intimamente relacionada. Mas também não se pode confundir. Não são os mesmos governos, nem parecidos. Não há relação entre este governo de Boric e o governo de Salvador Allende. Como disse, o governo da Unidade Popular apontava para o socialismo e este governo de Boric aponta para a social-democracia. Isso é completamente diferente.

No entanto, esta é a relação entre história e memória. Aqui, por um lado, se chega na explosão social porque os anos que tivemos na democracia, nessa pseudodemocracia, o trabalho que foi feito não foi suficiente para satisfazer esse povo tão sedento e faminto de verdade e justiça. Portanto, essa explosão nasce com muita força para responder um pouco a algo que estava acontecendo e que não dava mais para aguentar, como numa panela de pressão, que em algum momento ia explodir. E isso, todas as pessoas do âmbito político podíamos ver. Como disse, isso levou muito tempo.

Mas só tem essa relação, porque a direita está fazendo de tudo para que as pessoas voltem a sentir terror e está fazendo o povo acreditar que essa explosão social e o que está acontecendo agora, nesse novo governo, é muito parecido com o governo de Salvador Allende, o que não é verdade. Como eu dizia, não pode ser. São dois caminhos bem diferentes. Um visa diretamente satisfazer as necessidades do povo e o outro, a social-democracia, visa fazer as pessoas acreditarem que as necessidades do povo estão satisfeitas. Fazer acreditar, não satisfazer. Há uma grande diferença.

FdM – Como você vê as referências a lutas como a contra a ditadura ou mesmo a luta histórica do povo mapuche nesse sentido?

MV – A luta dos companheiros mapuches é uma luta endêmica, de toda vida. Eles têm lutado ao longo dos séculos por suas terras. Hoje essa luta é muito mais forte, porque, embora sejam distintas, diferentes, os processos seguem em paralelo. Quando chega a explosão social, também chega a um clímax a resistência que tiveram nossos companheiros mapuches. Então eles também conseguem decolar e começar outras facetas de sua luta aproveitando esse impulso da explosão social, porque nossos companheiros mapuches não estão lutando apenas em Tirúa, em Temuco, em Temucuicui, mas também na cidade. Então é transversal. Conheço muitos colegas que são mapuches e que estão aqui na cidade e que também são afetados pela questão dessa pseudodemocracia. Para a luta mapuche, eles precisam que haja um governo que realmente os apoie. Porque nas terras mapuches estão violando os direitos desses companheiros de todas as formas possíveis. Assim, os direitos humanos tanto dos adultos como os das crianças são violados. Hoje em dia vão à polícia, às forças especiais, aos latifundiários do sul do Chile que têm seus mercenários, que são as mesmas pessoas que eram soldados que hoje estão aposentados e por um salário, vão lá e armam seus grupos paramilitares para acabar com a luta dos nossos irmãos mapuches. Eles intervêm em todos os níveis da região, não se importam com nada, assim como também não se importam com o povo chileno.

Para eles, há uma parte de Santiago que é a Plaza Italia, que hoje chamamos de Plaza Dignidad, e daí até o oriente estão os ricos e ao norte e oeste estão os pobres. Eles quando falam de povo, falam do povo da Plaza Italia até lá em cima, lá no oriente. Da Plaza Italia ao poente não somos gente para eles, somos criminosos: eles falam do crime, não falam do povo. Então eles são tremendamente classistas, racistas, tremendamente arcaicos, enfim… Penso que o povo tem que ser classista também, assim como eles. Não podemos ser menos nesse sentido, porque tanto desrespeito ao povo não pode ser permitido, para dizer o mínimo.

Plaza Dignidad durante as manifestações de outubro de 2019.

FdM – Como você vê a importância da memória nas lutas populares atuais?

MV – Bem, você sabe que eu trabalho com memória, certo? É algo que me interessa muitíssimo, porque a partir da memória é que não se perde a luta. É com a memória que se vai conscientizando e educando o povo, as novas gerações. E também os visitantes, os turistas. Muitas pessoas não sabem do processo que vivemos aqui no Chile. E para a surpresa de vocês, muitas pessoas do povo aqui no Chile não têm muita consciência do que passou aqui, porque a ditadura – essa ditadura cívico-militar, porque não era só militar, tinha civis também – se encarregou de negar todo esse processo, de apagar a memória. Isso colocou a Agrupación de Derechos Humanos em um parênteses até o dia de hoje. Quando o povo dizia “não, eles violaram seus direitos, pobre gente, os mataram, assassinaram e desapareceram com seus familiares”. Então, negando o desenrolar desse genocídio e que eles lutavam não pelas [suas] famílias, mas por todo o povo, por toda a humanidade.

Nessa época havia um plano de governo no qual acreditávamos, e muitos de nós seguimos acreditando firmemente que é o melhor tanto para o povo chileno como de outros países. Essa coisa é internacional, não tem fronteiras: os pobres são pobres aqui, no México, no Peru, no Brasil, em qualquer lugar. Os ricos também, especialmente os ricos. Eles têm uma disciplina que é férrea e por isso se preocupam muito que não nos eduquemos. Eles se importam muito que não tenhamos memória. Já que eles precisam de cordeirinhos que vão para a fábrica e nós precisamos que cada um de nós seja um agitador, uma agitadora, pelos direitos humanos. Portanto, precisamos de agitadores de memória. São fundamentais a educação e a memória, sem isso não há processo revolucionário.

FdM – Você estava falando agora pouco da repressão ao povo mapuche e da divisão da cidade de Santiago, e essas são coisas que parecem resquícios da ditadura. Você pode falar um pouco mais sobre o que, ainda hoje, resta da ditadura?

MV – O que acontece é que vivemos em um país que tem uma economia de mercado neoliberal. Isso vai da colônia até agora, já que colonizaram até agora. Portanto, é apenas um processo, não são processos diferentes: têm diferentes fases, têm diferentes tempos, mas é tudo o mesmo processo, é continuidade. Não é que tivemos um problema em 1970 ou 1973 e agora em 2000 e tanto temos outro problema completamente à parte. Se analisarmos os dois conflitos, eles são pelo mesmo motivo. São exatamente os mesmos: o tema do povo insatisfeito, um povo infeliz, um povo que precisa de mais justiça social, mais tolerância, que seja mais equitativo. Um povo que tire os de cima, todos esses vícios do patriarcado em que vivemos não só nós chilenos, mas também a nível mundial. Todos os países que vivemos sob esta mesma bota, porque é a mesma bota: o neoliberalismo é um e não tem fronteiras. Somos nós que colocamos fronteiras em tudo, o que faz com que nossas lutas se dividam cada vez mais.

Por isso falava sobre a importância da união, porque eles conhecem muito bem qual é a importância de se unir e por isso eles marcham em uma só voz. Somos nós que caímos o tempo todo em suas armadilhas, porque eles conhecem muito bem disso. Existe um ditado que diz: “dividindo vencerás e governarás”, que eles levam ao extremo. Não sei, a gente fala muito da união, mas não somos capazes de reverter isso. Não somos capazes de passar por cima das diferenças, procurando os pontos de encontro para nos unir. Mas isso também tem a ver com tolerância, tem a ver, como eu disse, com a consciência. Quão consciente você está de que a união faz a força? Quão convencido você está de que a união faz a força? Quando se sabe da importância disso é quando se procura os pontos de encontro e vê quais são as diferenças que a gente tem que ver se podemos deixar para trás. Quando já não podemos deixar para trás essas diferenças, significa que você não pode mais se juntar a essa pessoa, você não pode se juntar a esse coletivo.

FdM – A explosão social iniciada em 2019 foi uma força muito grande, mas que ficou mais fraca com o tempo. Há três acontecimentos importantes que nos parecem tê-la afetado. Uma que você já falou um pouco, que foi a eleição de 2021. Os outros dois são a constituinte e a pandemia. Agora, qual foi o impacto e a repercussão desses elementos nesse movimento e na atual política chilena?

MV – Existem três variantes que têm uma grande influência de apaziguamento. Primeiramente, a constituinte é algo que não corresponde a isso. É algo que eu deixaria de lado porque graças a essa explosão social é que nasce essa constituinte. Agora, a diferença nisso é que é comum as pessoas acreditarem que a constituinte vai solucionar tudo e derrubar completamente a Constituição de 1980 e não é assim. Aqui há uma ilusão muito grande. Na verdade, vamos ter um plebiscito novamente. As pessoas pensam que a constituição vai mudar completamente, mas uma constituição de 40 anos não muda de um dia para o outro. Algumas coisas vão mudar. [Na verdade] há que se fazer a constituição com o povo. Conversemos entre nós para construirmos as leis que queremos.

As pessoas hoje estão ficando muito desiludidas com esse governo, mas é porque também se empolgaram e criaram expectativas que Boric nunca deu. Ele sempre foi bem claro sobre o que ia fazer. E também ficou muito claro por que votamos em Boric. No primeiro turno, nós votamos em outras pessoas e, no segundo turno, o resto de nós, as massas, na verdade não votamos nele, nós votamos na memória contra Kast, que é um homem de extrema direita. Portanto, estávamos numa encruzilhada: se não votássemos em Boric, Kast venceria. Ganhar de Kast significa ganhar da extrema direita. Ao ganhar da extrema direita, muito nos seria tirado… Já havíamos vencido várias batalhas: o voto feminino, o intervalo de 15 minutos quando se trabalha sentado, enfim… Tivemos muitas batalhas vencidas que, este homem e o que ele representa, a extrema direita, o que eles queriam era derrubá-las, eles queriam negá-las, eles queriam começar do zero. É por isso que eu falo de memória, certo? Porque íamos regredir mais de 40 anos. Então, quando você vota em Boric no segundo turno, você vota no nome de Boric e apenas no nome. Porque na verdade estávamos votando contra Kast. Estávamos votando para a memória, certo? Por toda essa gente que são mais de 3000 nomes de companheiros que eles assassinaram, que executaram, que desapareceram, que violentaram e que em algum momento torturaram porque o que [os companheiros] queriam era um projeto melhor, um projeto de vida melhor para o povo.

Com tudo isso, a pandemia está combinando. A esse direitista, Piñera, caiu como uma luva, porque soube reprimir sem reprimir. Nos tiveram trancados e não podíamos fazer coisa nenhuma, pois não é que não queríamos sair para protestar, o fechamento de tudo foi porque eles estavam cuidando de nós, não havia muito que pudéssemos fazer. As pessoas que saíram para se manifestar neste momento, nesta hora, eram caladas sem que o resto não fizesse absolutamente nada. Todo mundo com terror de se infectar. Então a questão da pandemia teve uma influência negativa. Colaborou com a direita, em conjunto com todas as medidas que tomaram e mais uma vez houve o estado de sítio. Piñera não governou sozinho: na época da pandemia, ele devolveu todo o poder aos militares. Então foi como uma ditadura no final das contas. E não podíamos fazer nada porque era a nosso favor [risos]. Então fomos como cúmplices do Piñera nesse processo. A verdade é que ele jogou muito contra nós. Isso teve grandes repercussões na explosão social. Foi um dos grandes fatores para que isso se acalmasse. Isso e o conjunto de como se chegou ao acordo da constituinte.

FdM – Você acha que a disposição do governo chileno de vacinar o povo o mais rápido possível, principalmente em comparação com seus vizinhos sul-americanos, tem a ver com o medo de Piñera de sua baixa popularidade?

MV – O cara estava fazendo de tudo para parar o processo e chegar ao fim do mandato. Isso porque, na realidade, Piñera deveria ter deixado o governo muitíssimo antes. Deveria ter se demitido, porém, não o fez e aproveitou a pandemia para não fazê-lo. Então ele agiu. Todos os benefícios que ele deu foram para abafar um pouco a explosão social, porque se ele não tivesse feito isso, a crise econômica que estamos vivendo e em que estamos submersos agora estaria em outro nível.

Boric tem esse fardo, porque já não está entregando esses subsídios à comunidade. Então, por ter tido tanta adesão, hoje a mesa está virando. Está ficando bastante impopular. Porque há uma crise econômica que não é só aqui no Chile, é mundial. E que aqui no Chile não tínhamos visto tanto porque aqui estavam esses subsídios. Piñera entregou subsídios porque não entregava coisa alguma, mas era o necessário para chegar ao fim de seu governo. Ele nunca iria deixar seu governo antes porque ele é um homem muito teimoso. Tenha em mente que o homem é um empresário, não um político. Ele nunca foi político. Ele se apoiou em um partido de direita, porque ele estava perto dos Chicago Boys, mas o homem é muito egocêntrico. Na verdade, o partido que o apoiava já não o estava apoiando, porque ele tomava medidas sozinho. Isso o estava tornando bastante impopular: a popularidade que ele tinha no final era muito baixa, chegou a ter uma porcentagem de declínio importantíssimo, chegando a uma cifra. E isso publicamente, vamos ver como eram na verdade as coisas, porque essas cifras se inflam muitíssimo.

Piñera foi salvo pela pandemia. No estado de exceção, ele entregou o país aos militares. Desta forma, ele conseguiu terminar seu mandato. Ele não tinha outro jeito. O cara foi inteligente e teve uma sorte única.

FdM – Sobre os presos políticos da revolta, você poderia falar um pouco sobre quem são esses presos e também qual é a relação do governo de Boric hoje com eles? E como a sociedade chilena está se organizando para protestar contra essas prisões? E que parte da sociedade está envolvida nisso?

MV – Existem dois setores: um que os apoia e outro que não. Principalmente porque os presos políticos da revolta, como lhes dizemos, são em sua maioria jovens, outros não tão jovens, que lutaram, como se autodenominam, na primera línea. E nessa linha de frente havia de tudo. É um movimento que é um só, mas distintos setores contribuíram.

Bom, os presos políticos da revolta, em sua maioria, aguardam julgamento. Eles nem sequer têm representação no tribunal, advogados ou qualquer coisa assim. Então o que acontece aqui é algo muito estranho. Não sei como explicar. Sempre foi dito que os prisioneiros da revolta eram delinquentes, o que não é verdade. Aqui tinha gente que vinha do SENAMEvii, gente que era trabalhadora, estudantes, enfim, um prisma bastante amplo. O denominador comum são as montagens: as mesmas montagens que os direitistas fizeram durante a ditadura, porque aprenderam muito bem a lição e hoje em dia estão replicando. Replicam por duas coisas: porque deu muito certo para eles e para voltar a implantar o terror nas pessoas.

Agora, temos pessoas, desse mundo social, que estão contribuindo, apoiando e colaborando com os presos políticos, tanto durante o governo de Piñera quanto nesse governo de Boric, porque nesse governo de Boric também se disse que há delinquentes nesse processo. Não há delinquentes neste processo. Os delinquentes que haviam foram retirados todos do cárcere. Os que ficaram na prisão são só os companheiros que foram ligados a montagens, que estão esperando que se conceda uma oportunidade no tribunal para que sejam abertos a eles um processo. Ou seja, estão presos sem fazer absolutamente nada, sem ter absolutamente nenhuma legalidade. Essa é a questão: ilegalmente. Porque os genocidas estão fora das grades e são genocidas. E eles já estão processados! No entanto, eles estão com benefícios, eles estão fora.

Hoje as pessoas com consciência – as pessoas que estão neste trabalho através do nosso tecido social, que está recém voltando a ressurgir aqui no Chile e com muitos problemas – estamos em todas. Estamos lutando, apoiando também os presos políticos, os direitos humanos, fazendo de tudo. Mas, na verdade, somos muito poucas pessoas que estamos nessa. Não é todo mundo porque todas essas pessoas que saíram na rua, as pessoas que estavam lá durante as mobilizações, todas essas pessoas que estavam convencidas de que havia um processo nacional, que tinham que seguir e tudo isso, foram para casa, fazer seu trabalho, cuidar de sua família e o processo passou a outro plano. Como se Boric fosse o salvador de tudo e nunca o foi.

FdM – E você pode falar mais sobre a situação das famílias das presas e dos presos?

MV – Bom, quando há presos políticos é um desastre completo em vários aspectos: emocional, econômico, desgaste físico… Ao mesmo tempo, não tem fim, tem que estar 24/7 voltado para o familiar que está preso. Então se produz um desgaste que em todos os níveis é muito grande. É por isso que nós juntamos essas coordenadoras para apoiar um pouco, porque o desgaste é bastante grande.

FdM – No Brasil, é possível fazer alguma coisa pela campanha para a liberdade dos presos políticos?

MV – Hoje, Boric está distribuindo alguns indultos. Ainda não há muitos. Os prisioneiros que são libertados basicamente o são porque, no fundo, não há provas na realidade. A questão é que também não podemos negar que Boric está no cargo há pouco tempo, então devemos dar a chance ao homem. Na verdade, já existem alguns perdões, mas temos que ver, porque ele ainda estava falando de criminosos e não há criminosos na cadeia devido à explosão social. Mas há que entender a posição dele: não pode chegar e fazer um indulto geral, porque aí também entram os genocidasviii. A experiência diz que, quando se faz um indulto geral, os genocidas se aproveitam disso e são os primeiros que estão aí na primeira fila para se beneficiar. Então, há que ser super cuidadoso com isso, ao menos aqui no Chile.

Bem, desde o Brasil não sei o que poderiam fazer na verdade. A difusão disso é algo que se necessita muito. Quanto mais as pessoas estão cientes, maior a pressão para o governo. Pressionar para que o governo tome as rédeas do assunto o mais rápido possível.

FdM – Uma questão que é sensível agora no Chile é a questão dos imigrantes. Qual é a situação das companheiras imigrantes na perspectiva de quem trabalha com companheiras de outros países?

MV – É tremendo, porque a situação dos imigrantes no Chile é muito grave. No sentido de que é preciso entender o seguinte: aqui no Chile chegavam pouquíssimos imigrantes até o chamado de Piñera na Venezuela para que continuassem chegando. A questão é que aqui nada foi preparado para esses imigrantes. A última intervenção que foi feita nas políticas migratórias aqui no Chile foi em 1920 e, de lá para cá, não houve renovação dessas políticas, nada mudou. Imagine todo o tempo que passou. Hoje temos uma população imigrante bastante grande, não só de um país: temos gente que está migrando da Venezuela, pessoas da Colômbia, do Haiti, da Nicarágua, da República Dominicana…

Outro dia eu vinha com minha filha no carro e um garotinho mais novo que meu neto, de 8 ou 9 anos, estava mendigando em uma rua por onde passavam veículos de alta velocidade. E já acostumado com o sistema. Então, o estrago causado por trazer imigrantes para um país sem nenhum controle está em outro nível, porque isso influencia todas as políticas do próprio país e influencia diretamente as pessoas, aquelas que migram para o Chile, porque elas vêm com a expectativa de uma vida melhor, vêm aqui e descobrem que não têm emprego, se encontram com milhares de problemas para regularizar o visto, regularizar a vida aqui. Elas encontram muita discriminação aqui no Chile, apesar de ser muito oculta. Praticamente não há oportunidades para eles, são muito poucas. Então, imagine que há crianças sem ir à escola, os centros de saúde estão sobrecarregados. Não há mudanças suficientes aqui.

Então as mulheres aqui no Chile, as que vêm de fora, a maioria tem que se prostituir, não tem outra escolha. E não estamos falando de prostituição de rua, onde o cara coloca ela no carro e paga pelo serviço dela. Estamos falando de casar e viver com um homem por um teto e comida. Estamos falando de uma situação bastante dramática, uma situação que tem que ser muito regulada. Atualmente, felizmente, elas estão pelo menos se agrupando e se tornando coordenadoras e através disso nós as temos apoiado para organizar essas coordenadoras: onde elas se juntam, ver quais são suas realidades… [Elas] se apoiam entre elas também. Estamos apoiando um pouco a educação delas.

FdM – Como você vê os horizontes da luta no Chile hoje e sua relação com as lutas internacionais?

MV – Não acho que vai ser muito rápido, mas acho que essa luta está se consolidando cada vez mais: é o que temos que consolidar para que essa luta aconteça em algum ponto e ser um golpe certeiro. Primeiro tem que consolidar o tecido social. E é o que estamos fazendo, consolidando o tecido social: conscientizando, educando. É o que penso ser fundamental em qualquer luta.

Às vezes, cometemos o erro do imediatismo, e lutamos na medida em que as coisas vão acontecendo, e respondemos ao que as circunstâncias estão nos dizendo. No entanto, penso que há que antecipar os fatos. E se antecipa os fatos criando quadros políticos sociais, gerando educação. O que estávamos falando há pouco: trabalhar com as crianças é algo que devemos ter como nosso principal objetivo. Educar. E educar as crianças. As crianças são como esponjinhas, por isso temos que educá-las antes de nós, porque são os jovens do futuro. E temos que formar quadros: quadros político-sociais. Com convicções de ferro, incapazes de se corromper. E para isso temos que começar desde as crianças a mostrar esses valores, esses princípios, para que elas tenham apenas que reafirmá-los. Ou seja, na hora da desobediência de sua juventude, momento em que se começa a lutar.

Acho que isso é o importante, o principal: a educação. A educação tem muito a ver com a memória. E isso é o principal para qualquer luta, em qualquer país. Como mencionei antes, não acredito em fronteiras. Acho que as fronteiras são vícios que o neoliberalismo nos dá para que estejamos cada vez mais divididos, nossos princípios, nossos pontos de vista. Vamos realmente acreditar que um com o outro não tem nada a ver, quando tudo faz sentido. Lá no Brasil são as favelas, aqui no Chile são os acampamentos. Aqui no Chile o azeite e lá no Brasil, não sei, vai ser a farinha. Aqui no Chile tem inflação, é muito provável que no Brasil também tenha inflação. Então, somos todos iguais, universalmente. Os pobres são os pobres, os ricos são os ricos. Nós somos os oprimidos e são eles quem nos dão uma rasteira. Portanto, fronteiras físicas não existem.

Todos temos que lutar juntos, de uma forma ou de outra. Ter consciência, a primeira coisa que temos que fazer é educar. Educar é o único caminho para conquistar alguma coisa. A longo prazo, não a curto prazo. Eu acho que no curto prazo não tem nada, é mais provável que eles acabem com a gente. Mas acho que educação e a memória são o que vai fortalecer essa luta. Vão dar à luta a importância que tem.

Parede da antiga saída do metrô ao lado da Plaza Dignidad, atualmente praça autogestionada.

FdM – Marisol, muito obrigado pela entrevista.

MV – Eu também agradeço. Como eu disse, as lutas em que temos que estar não têm fronteiras. Então, se quiser colaborar, aqui estou eu.

i Entrevista por Ian Gabriel, Lucas Bueno e Tomás Antônio em 22 de abril de 2022. A entrevista foi revisada e algumas informações atualizadas pela própria Marisol no dia 05 de agosto de 2022. Transcrição por Ian Gabriel. Traduzido por Jéssica Camargo e Ian Gabriel. Revisão por Ana Paula Bueno, Milena Brentini, Ian Gabriel e Jéssica Camargo.

ii Para entrar em contato, acompanhar próximas entrevistas e outras atividades do coletivo, acesse: https://www.instagram.com/coletivoflordemaio/.

iii As coordinadoras são articulações de luta que coordenam diferentes movimentos, organizações e comunidades em torno de determinadas pautas no Chile. Com esse termo, Marisol se refere durante a entrevista por vezes a essas coordenações feministas compostas por organizações e movimentos de diferentes territórios e, em outros trechos, a militantes que constroem as coordinadoras (N. T.).

iv Dirección de Inteligencia Nacional, órgão repressor político da ditadura pinochetista (Nota da tradução).

v Algo como panelas comuns, cozinhas comunitárias. É uma forma histórica de organização autogestionada de moradores de uma vizinhança para a preparação e distribuição de comida. São espaços voltados também para discussões políticas mais amplas do território em questão (N. T.).

vi Áreas de moradia popular precária que desde o final da década de 1950 – com mais força até o fim da ditadura – são uma referência na forma de se responder às grandes desigualdades urbanas presentes nas cidades chilenas, especialmente no caso de Santiago. Através das tomas (ocupações) formavam parte de um dos principais meios de organização popular autônoma, apesar de haver também poblaciones construídas pelo Estado (N. T.).

vii Servicio Nacional de Menores, organismo que se encarrega principalmente de crianças e adolescentes apontados como infratores das leis do país (N. T.).

viii Marisol se refere aos violadores, torturadores e assassinos da ditadura de 1973 a 1990, especialmente os da alta hierarquia das Forças Armadas do Chile e da DINA, maiores responsáveis pelo genocídio de milhares de chilenos. Contudo, o termo também engloba militares de menor patente, paramilitares de organizações de direita como o Patria y Libertad e civis que participaram diretamente ou indiretamente desses crimes, como advogados e empresários favoráveis ao regime. Vale ainda citar que alguns assassinatos relacionados a esses mesmos assassinos e à política ditatorial foram cometidos mesmo após 1990, dada a manutenção de forte presença no poder no Chile das alas militares e de extrema direita (N. T.).