03 de agosto de 2017, Bruno Lima Rocha
Passava das 22 horas da 4ª feira, 02 de agosto de 2017, quando a votação nominal no plenário da Câmara dos Deputados encerrou. No total, 263 votos a favor do arquivamento da denúncia, indo ao encontro do relatório substituto produzido pelo deputado tucano mineiro Paulo Abi-Ackel na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da casa. Contra o arquivamento, foram 227 votos, houve 2 abstenções e 19 ausentes (ver http://encurtador.com.br/egF29 ) . O país, em plena deflação recessiva, acompanhou ao período do recesso parlamentar e os dias que antecederam a votação sendo de intensa barganha e negociações vindas do Planalto. Nada de novo, fora os holofotes e a vontade do residente do Jaburu em nada esconder.
Se há algo de positivo em todo esse processo que beira o absurdo, é a exposição das vísceras da política profissional brasileira. Os parcos votos do governo refletiram a dificuldade já verificada na montagem da base a favor de Temer na CCJ. Na Comissão, onde o relatório de Sérgio Zveiter (PMDB-RJ) foi derrotado, o Planalto teve de trocar metade das posições, negociando com líderes de legendas cada voto. Metade dos votos a favor do relatório de Abi-Ackel e, obviamente, contra o relatório de Zveiter, foram fruto destas trocas. O mesmo aperto se verificou em plenário.
Para conseguir os votos, o Planalto liberou emendas parlamentares e negociou refinanciamento ou prazos alongados de dívidas empresariais ou do Funrural (ver http://bit.ly/2vu1Al1 ). Barganha explícita e à luz do dia, quase pornográfica, parafraseando Nelson Rodrigues. No caso das emendas, há uma blindagem parcial. As mesmas são impositivas, ou seja, o orçamento da União aprovado pelo Congresso – por esta legislatura – faz parte da peça orçamentária e seriam obrigatórias. Mas, diante da PEC 55 do Senado (a do Fim do Mundo, antes aprovada como PEC 241 na Câmara), o orçamento federal fica com gastos contidos e há contingenciamento de custeio e despesas. O chamado “shutdown” no jargão neoliberal, foi “flexibilizado” para dar sobrevida ao governo ilegítimo. Entre os meses de junho e julho (até dia 28) do corrente ano, foram pagas emendas da ordem de R$ 799,8 milhões e empenhadas (compromisso a ser pago) na ordem de R$ 3,4 bilhões (ver: http://bit.ly/2u4oiRq). Assim, embora executando emendas impositivas, a liberação financeira opera como moeda de troca para a votação.
A barganha tem sua relevância proporcional à escassez de recursos. Quanto mais enxuto é o cofre, mais forte é o poder do intermediário. Considerando o modelo brasileiro de “colegião” eleitoral, o deputado federal que tem mais municípios em “sua base” e consegue liberação de recursos extras, fecha estas alianças com prefeitos, vices, vereadores e cargos comissionados, “amassando barro com poeira” para atingir o índice eleitoral necessário ano que vem. Se a regra de proibição do financiamento empresarial de campanha (sem doações através de CNPJs) seguir, logo, as relações de clientela e fisiologismo de baixa intensidade aumentam de importância. Temer conhece a “alma do Congresso”, eu diria, “o ethos do político profissional”, e percebeu a mudança de comportamento, alterando a cultura política brasileira.
Até o início desta legislatura e a eleição do ex-deputado federal pelo PMDB/RJ Eduardo Cunha para a Presidência da Câmara, havia ainda algum pudor em escancarar o fisiologismo e suas relações de clientela. Cunha, na “defesa do protagonismo da casa e a independência do Poder Legislativo” avançou neste sentido, trazendo à tona as formas mais abjetas da política profissional brasileira. A tampa do bueiro foi arrancada no processo do golpe parlamentar com alcunha de impeachment, chegando ao êxtase no domingo 17 de abril de 2016 (ver http://bit.ly/1U05AzM), através do espetáculo de horror em rede nacional de televisão. De lá para cá, O Brasil profundo emergiu na superfície. A dimensão “pornográfica”, longe de ser uma analogia moralista – ou de hipocrisia como ocorre aos pregadores da moral universal – é uma mudança de comportamento. Avançou a elite política brasileira, auto e sobre representada pelos mandatos informais de classe, setor, fração de grupo dominante, de políticos neopentecostais, donos de mídia, empresários, da bancada transversa BBBB (bala, bíblia, boi e bola). Tal avanço trouxe à tona um comportamento político explícito, rompendo os biombos limites da moral privada tornando-a pública.
Tais parlamentares, tomando como modelo limite, tipo-ideal às avessas, ao impagável deputado federal Wladimir Costa (SD-PA, o da tatuagem transitória), sabem perfeitamente bem que quanto menor o apoio de Temer, maior o poder de barganha. A relação se mantém na capacidade extrativa. Aumenta a escassez e reforça o poder do intermediário para arrancar vantagens ilegítimas atadas a um fiapo de legalidade, como o próprio mandato do atual presidente. Chama atenção o racha do PSDB na Câmara e a elevada votação da oposição, conseguindo avançar em cima de uma base frágil, a mesma base que elegera Cunha, derrubou Dilma e depois cassou ao próprio Eduardo Cunha.
O governo Michel Temer empenhou um esforço gigantesco e revelou instinto de sobrevivência, mas apontando mais fraquezas do que força. Neste ano e meio restante de mandato, caso a próxima renúncia do PGR Rodrigo Janot não ganhe corpo, o residente do Jaburu terá de abrir ainda mais o cofre já raspado para se mostrar um presidente “válido para o mercado”. Com o fato da sentença Sérgio Moro contra Lula haver acelerado a agenda eleitoral, já sendo feitas sondagens para planos B e C, o Congresso mostra toda sua “volatilidade”, acompanhada por uma sanha de cargos, salários e vantagens que embora legais, estão ao arrepio da legitimidade.
Para além da derrota pontual das oposições, entendo que houve uma pequena vitória na votação em plenário da denúncia. Não me refiro às siglas eleitorais e seu embate parlamentar. O ponto vitorioso foi aumentar o nível explicito da política oligárquica, da dimensão “pornográfica” da politicagem, do jogo de barganhas expondo as entranhas e vísceras dos setores dominantes no Brasil. Tamanho abismo vai cobrar seu preço e angariar acumulação política para quem trabalhar socialmente a partir da base da pirâmide.
Bruno Lima Rocha é professor de ciência política e de relações internacionais
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