Um prédio há poucas quadras do mar, em Copacabana, que havia sido “um antro de perdições” agora é lugar de “gente decente e de família”. Mais ou menos assim que uma moradora do edifício Master o caracteriza na entrevista de abertura do filme homônimo de Eduardo Coutinho. O prédio abrigou a equipe do diretor por algumas semanas e o resultado foi um longa que grita a diferença e sintetiza a moral individual burguesa ao passo que é um exercício sofisticado da alteridade.
Pra início de conversa, acho interessante perpassar as histórias contadas pelas/os moradoras/es pra termos uma noção: um cara que conheceu o Frank Sinatra; um jogador de futebol internacional; uma prostituta; um que morou nos EUA; outra que é cantora e já se apresentou no Japão; ator da Globo; uma espanhola que aqui é empregada doméstica (que diz não haver discriminação de classe e raça). E assim vai indo.
A incrível diversidade e polifonia que o filme evoca poderiam tornar difícil, à primeira vista, algo que unisse aquelas histórias e aquelas pessoas de realidades muito distintas. No entanto, acho que é possível encontrar um elo (não que seja obrigado, mas acho interessante). O primeiro é a violência, de ordem subjetiva. Como falei ali em cima, o universo da prostituição está presente, representado por ao menos uma personagem. Não é preciso dizer que a prostituição por ela mesma já é violenta o suficiente. Soma-se a isso a fala da jovem, corajosa ao expor sua vida pessoal, deixando o relato ainda mais denso. O machismo, cá dito, aparece novamente em um caso em que a mulher relata ter tido vontade de se matar em decorrência do acúmulo de ações opressoras do marido. A violência segue: há os desempregados, oprimidos pelo Estado e o capital; a nostalgia, que também pode ser uma forma de violência, decalcada de um passado não mais existente à ausência no presente, é representada no longa pelo senhor que ao ouvir uma música chora de emoção.
Outro fator que nos possibilita pensar em conjunto essas vozes é de ordem social: a cultura da individualidade burguesa. Muitos ali aparentam, a partir de suas falas, ter uma condição econômica que permitisse morar em apartamentos maiores que aqueles conjugados de pouco mais de 30m². A questão aqui naturalmente não é o tamanho do apartamento ou a renda dos personagens, mas pensar no princípio estruturante da sociedade ocidental desde a Revolução Francesa. A partir de lá, se criou um imaginário de independência do indivíduo que, na literatura, por exemplo, se refletiu no Romantismo, movimento no qual foi possível colocar um sujeito qualquer[1] no centro da narrativa, e, por conseguinte, da vida em sociedade, já que a literatura anda a seu lado. Então, o que isso, em suma, representa, é o bem acabamento da individualidade burguesa construída pelo capitalismo há uns bons séculos.
E toda essa realidade não conformada adquiri força porque Coutinho não tenta simplificar ou unificar os discursos. Ele não apaga as contradições. Por exemplo: Coutinho não tenta ser juiz de seus personagens, em um claro movimento mercadológico para amenizar o filme e vendar mais. Pelo contrário, os confronta com perguntas incisivas, criando um diálogo produtivo que ajuda a edificar Edifício Master. A contradição é princípio estruturante da sociedade brasileira e manter isso significa respeitar nossas singularidades e encarar o problema, não fugir dele.
Há outros pontos interessantes na maneira como Coutinho dirige e mantém essa coerência. Um deles é não dar voz somente ao entrevistado, como dito acima. Ele não nega sua voz e media a todo instante, algumas vezes aparecendo na tela e outras com a tradicional voz em off. Isso é o que o diretor chama de contingência da verdade. Saber que aquilo é filme e não vida real é o pressuposto de Coutinho. A cabo disso, Coutinho é também experiente o suficiente para saber que seu filme compete com a lógica imagética da televisão. Coutinho sabe que o entrevistado sabe que quando há uma câmera a realidade é distorcida. A pessoa gravada tentará falar o que pretensamente acha que o diretor quer ouvir. A câmera é um objeto de poder que torna a conversa assimétrica. Para isso é necessário fazer quem fala esquecê-la. Por isso que Coutinho cria vazios de silêncio desconfortáveis, por isso pergunta coisas pessoais, porque sabe que são assuntos que nos fazem falar descontraidamente sem controlar a fala. (Coutinho é hábil também em fazer perguntas diretas e desconfortáveis para tirar dali a contradição, se for preciso. No filme, há um entrevistado que devolve a pergunta e Coutinho hesita mas responde. Isso permanece no filme, dando prova de novo da alteridade e compromisso com a contingência da verdade.)
Há uma cena em especial que deixei separado para vermos como Coutinho, por manter o espírito dialético, se contradiz. Quando a entrevista é com o síndico, que carrega consigo a marca de ter tornado o prédio em um ambiente familiar, Coutinho parece deixar de lado a alteridade para debochar daquela figura que se considera um herói e pai de todos pelos feitos de sua gestão. Quando a cena começa, não vemos o síndico de primeira, mas esperamos o término de um pequeno plano-sequência que culmina na sala em que trabalha e o vemos no meio de um telefonema, “atarefado”. Depois disso, o ouvimos falar de sua gestão e modo de relacionar-se com os condôminos. A frase síntese do pensamento do sujeito dá nome a esse texto: usa-se Piaget, se não der, Pinochet. É, ao fim, uma figura patética, que Coutinho faz questão, sutilmente, de ridicularizar.
No fim das contas, é um retrato de parte da sociedade brasileira que nos diz muito do nosso comportamento enquanto classe. Coutinho eleva o documentário a um patamar que fica difícil ver coisas mastigadas e uniformizadas depois. De boca em boca, os anseios e problemas de diferentes ordens dão ideia do tamanho do Brasil, da pluralidade e também da nossa violência (e da importância de cultivarmos a alteridade).
Rodrigo Mendes
[1] “Qualquer” aqui significa que não é um herói que simboliza uma nação, como era na Grécia de Homero, por exemplo. No Romantismo, as tristezas, alegrias, raivas e tensões do sujeito comum ganham protagonismo nas obras justamente por sua subjetividade, fazendo oposição do eu ao todo.
Referência:
COUTINHO, E. “O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade”. Proj. História, São Paulo, (15), abr, 1997.