De baixo para cima: a luta pelo Direito à Cidade no Morro Santana

De baixo para cima: Fazer Democracia Direta

O Repórter Popular é uma ferramenta de comunicação feita pelo e para o povo. Ou seja, estamos comprometidos com uma ideia de democracia radical. Em conjunto com a militância da Resistência Popular e o Ateneu Libertário A Batalha da Várzea apresentamos a série de textos “De baixo para cima: Fazer Democracia Direta”. Os textos abordarão experiências de luta popular construídas desde a base.

Esperamos que a leitura possa provocar reflexões nessa conjuntura de tanto autoritarismo. Fiquem agora com o segundo texto da série. Leia o primeiro texto aqui.

A luta pelo Direito à Cidade no Morro Santana

Por Luís Gustavo da Silva/ Resistência Popular Comunitária

São tempos de revolta… Com o desemprego, o custo de vida, serviços públicos ruins e corte de direitos. Enquanto isso, a violência, a intolerância e o individualismo atacam e dividem nosso povo preto e pobre. Nas cidades, a desigualdade social se escancara. Enquanto toda a infraestrutura urbana é organizada para beneficiar os ricos, os pobres são abandonados na periferia, nos morros e becos, sem direito à cidade. É época de eleição e os oportunistas aparecem pra se promover em cima da nossa desgraça. Agora pagam churrasco, doam cesta básica e fazem promessas. Só sobem o Morro na hora de pedir voto. Depois de eleitos, só vestem terno, andam de carro importado e comem em restaurante caro.

Mas em meio tanta miséria e desesperança, existem outros caminhos para uma sociedade mais justa, solidária e democrática. No Morro Santana, território onde vivemos, temos algumas histórias pra contar. Esperamos que a partir delas possamos refletir, inspirar, e avançar rumo a uma outra noção de comunidade, de cidade e de sociedade. Não é um caminho fácil, mas é como cantam os libertários, “a vitória tá na mão de quem peleia”.

Memória de luta

Na Zona Leste de Porto Alegre, cercado por grandes avenidas e fazendo divisa com a cidade de Viamão está localizado o Morro Santana. Hoje, milhares de pessoas se espalham pelos bairros e vilas que o rodeiam. Mas nossa luta não é recente. Importante lembrarmos que antes da colonização era ocupado por  indígenas. No século XVIII, chega Jerônimo de Ornellas, o invasor (para alguns o “fundador de Porto Alegre”) que montou uma fazenda no alto desse Morro, o ponto mais alto da cidade. Devemos fazer memória à resistência dos negros que foram sequestrados da África e escravizados nesse Morro, no sítio que ficou conhecido como Rincão de São Francisco. Mas vamos focar no passado recente.

Do rural ao urbano

Até a metade do século passado o Morro Santana era rural, tomado por chácaras produtivas, herança das famílias açorianas que foram assentadas nas antigas terras de Ornellas no século XVIII. Entre os anos 50 e 60, devido a elitização do centro de Porto Alegre, trabalhadores acabam buscando casas na periferia. De olho no lucro em cima da demanda habitacional, empresas loteadoras compram as antigas chácaras do Morro e constroem moradias populares. Logo chegam os novos moradores e começam a se organizar, fundando a SOBREVIPA (Sociedade Beneficente Recreativa da Vila Protásio Alves), iniciando o movimento comunitário na região.  

Nos anos 70, em paralelo ao “milagre econômico” da ditadura militar, grandes instituições chegam às proximidades do Morro Santana: é o caso do Esporte Clube Cruzeiro, da FAPA – Faculdade Porto Alegrense e da UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (que hoje detém 60% do Morro). Em nome do “progresso”, os militares autorizam que a indústria mineradora exploda nosso Morro, o que deixou as gigantes cicatrizes que hoje são nosso “cartão postal”: as pedreiras.

Num contexto de urbanização de Porto Alegre, o granito santana foi utilizado na pavimentação de ruas, calçadas, meio-fios etc. Explodem a pedreira para a cidade crescer, e as consequências de uma cidade grande começam a ser sentidas também no Morro Santana. Enquanto o granito enfeitava o centro cidade e bairros de classe média e alta, os trabalhadores das pedreiras começam a formar as primeiras vilas. A primeira que surge é a Vila Nova Pedreira, de início era ocupação “autorizada”. O patrão construiu os primeiros barracos, cedia luz para os trabalhadores e a água água vinha de um poço artesiano.

Na virada dos anos 70 para 80, muita gente do interior começa a vir pra cidade em busca de oportunidades e não encontra lugar para morar. E é passando necessidade que aprendemos a nos organizar, arrancar os direitos negados pelo Estado com nosso “jeitinho brasileiro”, criativo e peleado. Na ação direta, o povo começa a ocupar a área ao redor da pedreira, surgindo aí outras comunidades como a Vila das Laranjeiras e Vila Nova Tijuca. A terra era privada e isso servia de desculpa pro governo negar os direitos básicos. A saída foi a organização popular. Após muita luta, as comunidades conseguiram garantir a coleta de lixo e a CEEE aceitou levar energia pelo menos até a entrada da Vila. Dentro da vila, os moradores fizeram mutirões, cada um cedeu um pouco de fio e com os “gatos” ergueram postes de luz. Enquanto isso, a cidade seguia se modernizando e a pedreira continuava na ativa. As explosões prejudicavam os moradores, quebravam vidros das casas, rachavam paredes, além de devastar a paisagem natural do nosso belíssimo Morro Santana. Contra tudo isso, os moradores organizaram várias mobilizações, conseguindo desativar a pedreira no início dos anos 80.

Fim da ditadura militar e abertura para a democracia direta

Já na década de 90, com a abertura democrática, o movimento comunitário se intensifica, com o surgimento de muitos projetos sociais e entidades de base. Um exemplo é o da Creche Sagrada Família, que em conjunto com o Comitê contra a Fome distribuía alimentos da CEASA na comunidade. Surgem também novas associações de moradores e clubes de mães, que conseguem conquistar o posto de saúde. Nessa época, comunidades kaingangs chegam do interior para retomar terras na região de Porto Alegre. Algumas se instalam na Vila Jari (Viamão), área estratégica, próxima ao Morro Santana. Rico em biodiversidade, os kaingangs passam utilizar da mata do Morro Santana para manejo e coleta de materiais como cipós, taquaras, ervas medicinais, além de rituais religiosos.

Nos anos 2000, movimentos sociais como o MTD e MNCR conquistam as Frentes Emergenciais de Trabalho, um programa de geração de renda a partir da organização popular. A partir dessa luta, se organizam os Comitês de Resistência Popular em alguns bairros, sendo um deles no Morro Santana. Diferente da maneira tradicional e verticalizada das associações de bairro, os comitês se auto-organizavam a partir da democracia direta. Assim ninguém decidia em nome de ninguém, todas e todos os moradores tinham voz e tomavam decisões coletivamente. A experiência das frentes de trabalho acaba não dando certo, mas moradores que estavam organizados no Comitê de Resistência Popular continuaram organizados em outros projetos. Alguns fundam uma rádio comunitária, surge aí A Voz Do Morro, que segue ativa até hoje, se organizando também de maneira horizontal. Outros iniciam projetos de educação popular, com alfabetização e cursinho pré-vestibular, que hoje toma forma no COLEP – Coletivo Pela Educação Popular. Mais recentemente, em 2015 surge o Coletivo Visão Periférica, inicialmente com uma biblioteca comunitária na garagem de um morador. Logo o projeto agregou mais moradores e apoiadores que desenvolvem ações culturais, sociais e ambientais (horta comunitária, trilhas ecológicas, mutirões, saraus, cinemas de rua…).

Universidade vs. comunidades

Em fevereiro de 2010, um coletivo de cerca de 50 kaingangs retomou uma área do Morro Santana pertencente a UFRGS, a reconhecendo como parte de seu território tradicional. A UFRGS, desrespeitando a lei, pediu a reintegração de posse que foi executada pela Polícia Federal e Brigada Militar. Mesmo com a remoção, a ação direta garantiu aos indígenas o direito de acesso a área para coleta de matéria prima.

Outro conflito aconteceu na mesma época quando a UFRGS decidiu cercar o Campus Vale. A desculpa do combate à violência, na prática fechava da passagem entre o Campus e Vila Santa Isabel (Viamão), impedindo que os moradores da Vila acessassem o terminal de ônibus dentro do espaço da Universidade. Com isso, uma articulação entre os moradores e estudantes da Universidade dispara a campanha “Pra que(m) serve teu conhecimento?”. Após três meses de luta a Reitoria desiste de cercar o acesso. Importante lembrarmos também da resistência da Vila Boa Esperança, ocupação próxima ao Morro Santana, que desde 2016 resiste contra uma reintegração de posse movida pela UFRGS.

A Batalha da Colina

Nos últimos anos, muitas comunidades vem sofrendo com reintegrações de posse em Porto Alegre. Em 2017, no Morro Santana aconteceu um fato marcante que ficou conhecido como “A Batalha da Colina”. Moradores da Vila Colina ergueram barricadas e resistiram ao ataque da polícia e das patrolas que subiam o Morro. Duas casas foram derrubadas e outras dezenas ainda correm riscos de serem despejadas. Mas a partir daí moradores de diversas partes do Morro começam a se unir em solidariedade à causa da Colina, tendo a rádio comunitária como referência. Uma rede de iniciativas solidárias está surgindo desde baixo, criando uma cultura de participação política, organização comunitária, e luta por direitos.

Reflexões sobre o direito à cidade

É interessante como o desenho das cidades escancara a desigualdade social de nossa sociedade capitalista. De um lado, os ricos recebem asfaltamento, ônibus com ar condicionado, praças bem cuidadas, etc. Toda a infraestrutura urbana é pensada por e para eles. Do outro lado, a maior parte da população é jogada nas periferias em meio ao esgoto, ao lixo, distante dos grandes centros de poder.

É assim porque quem manda na cidade são as grandes empresas, em conjunto com os políticos e com apoio de técnicos muito bem pagos. São eles que decidem tudo, onde vão passar avenidas, túneis, onde serão construídos shoppings e grandes empreendimentos. Grandes obras que são construídas com a força dos trabalhadores que moram na periferia. As comunidades que são atingidas por tudo isso não tem voz nenhuma. Muitas vezes são despejadas e não tem para onde ir.

Não queremos mais engravatados decidindo por nós. Defender o “direito a cidade” passa pela defesa de direitos básicos como moradia digna, transporte público, saneamento, ensino, saúde e lazer. Mas vai muito além disso. Mais do que o acesso aos serviços básicos, queremos gerir a produção da cidade, porque quem a produz é o povo trabalhador. As experiências de luta comunitária que apresentamos até aqui nos apontam por onde seguir: é de baixo para cima, da periferia para o centro. Com auto-organização das comunidades, através da democracia direta e da luta popular, façamos valer o verdadeiro direito à cidade.

Referências

FREITAS, Ana Elisa. “Nossos contemporâneos indígenas”, Povos Indígenas na Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba, 2008, p. 5-13

CATAFESTO, José Otávio. “Territórios e Povos Originários (Des)velados na Metrópole de Porto Alegre.”, Povos Indígenas na Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba, 2008, p. 14-24.

SALDANHA, José Rodrigo Pereira. “Selvagens, barbárie e colonos : coletivos indígenas kaingang e o choque com a civilização no Sul do Brasil Meridional contemporâneo”. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2015.

GASTAL, Susana. “Memória Dos Bairros: Morro Santana.”

BARROSO, Vera Lucia Maciel e ORGS, Maria Osmari. “Do Morro Santana a Cidade de Porto Alegre.”, 2004.

DORBERSTEIN, Juliano e CORRÊA, João Alexandre. “Memória em ruínas: a Casa Branca do Morro Santana.”