Da Militância Libertária na Universidade Privada – parte 2

“EU TO PAGANDO”: O CLIENTELISMO E O MOVIMENTO ESTUDANTIL


também inscrita na lógica problemática da educação privada, está a noção de que a Universidade, como empresa, precisa “servir” e se adequar às necessidades e vontades dos “clientes”, atendendo as demandas estudantis como estratégia de concorrência no  mercado capitalista.

assim, as lutas do corpo discente não devem dar-se como disputa política inserida em um contexto de luta de classes, mas como negociações contratuais entre partes.

nesse sentido, até mesmo quem compõe setores importantes dos movimentos estudantis das universidades costuma direcionar forças e ideias no sentido de pautas contratuais, como o aumento de mensalidades, problemas de financiamento ou “má qualidade” do ensino – todas pautas muito válidas e legítimas, mas que costumam ser vistas e entendidas através de críticas muitas vezes elitistas, desconectadas das lutas sindicais de professoras e funcionárias e direcionadas a conquistas pessoais, pontuais e limitadas em alcance e potência política.

ao ver a instituição como uma empresa que precisa atender suas clientes, vê-se também que as tais clientes têm como mecanismo de pressão somente o boicote ou a evasão e o consumo na concorrência, métodos muito individualizantes e muito normalizados de garantir conquistas.

este pensamento desconsidera uma série de elementos da realidade, sobretudo

  1. a) o caráter da universidade privada como uma instituição que garante direitos, não apenas vende uma prestação de serviço;
  2. b) o fato de que, por isto, as universidades não estão “livres” para atuar no mercado como quiserem, tentando “atrair clientes”, pois são [ou deveriam ser] reguladas por instituições que tentam garantir uma lógica específica e inscrevê-las em uma política nacional, coletiva, de ensino superior no país;
  3. c) que o diploma universitário se configura, sobretudo pra classe trabalhadora, não apenas como um serviço que se compra e se utiliza, mas como um projeto de vida, um sonho, um objetivo e uma estratégia de ascensão social e crescimento pessoal, não sendo nem objetivamente possível nem pedagogicamente recomendado que se escolha e se flutue entre diferentes instituições como quem degusta um cardápio de prestadoras de serviço;
  4. d) o fato de que as políticas conciliatórias dos últimos tempos garantiram uma enorme fatia do alunado que não paga mensalidades nas privadas, mas que enfrenta na academia uma penca de outras dificuldades que tendem a ser invisibilizadas, relativizadas ou esquecidas por um movimento estudantil que se entende como um movimento de consumidoras, apenas;

mesmo a luta por mensalidades mais baixas e por mais qualidade no ensino não devem ser vistas como um debate entre prestador e usuária de um serviço qualquer, mas como uma luta essencialmente política, que tem impacto real nas vidas das pessoas, que define futuros e que é integrante de uma realidade muito maior do que o bolso individual dos ‘clientes’.

as demandas estudantis estão inscritas em uma série de disputas que pautam a realidade das universidades, que se dão através de diferentes atrizes, como as trabalhadoras terceirizadas nos campi, as trabalhadoras técnico-administrativas, as professoras, as pesquisadoras e alunas da pós-graduação…

lutar dentro da universidade, mesmo que lutar por preços mais baixos e “melhor qualidade”, pode e deve ser entendido como uma tarefa militante, não consumidora, e se desenrolar ciente, articulada e em solidariedade a outras questões do cotidiano universitário.

– “SÓ ESTUDAR”E A POLÍTICA FORA DA SALA DE AULA
pelo caráter de classe e pela característica de estudantes-trabalhadoras como maioria, as grandes universidades privadas são ocupadas por pessoas que vivenciam a experiência acadêmica somente através da sala de aula.

diferente dos sempre ocupados e movimentados campi públicos, as universidades privadas têm um perfil de uso que restringe as vivências às horas de aula, com raras exceções, e que experiencia a instituição como sendo somente este lugar aonde se vai para estudar, sem nenhuma responsabilidade ativa sobre esse processo de ensino-aprendizagem e seus espaços físicos e afetivos.

essa característica, dada pelo perfil socioeconômico, mas também (e sobretudo, em alguns casos) por uma escolha e uma vontade políticas das administrações das universidades, se faz como mais um entrave à participação e à criação de cultura militante nos espaços de ensino.

a vivência das alunas com a chamada “vida acadêmica” é um contato muito precário e limitado com a sala de aula e as atividades acadêmicas que se dão em horários de aula, geralmente noturnas, e isso deixa ainda mais difícil pensar em uma prática política dentro da universidade que seja mais militante e menos ativista, mais duradoura e menos pontual.

 

O PARADOXO DA NECESSIDADE vs. DISPONIBILIDADE
como espaço amplo, supraclassista e diverso, circulam pela universidade (e pelos espaços do movimento estudantil) diferentes estudantes com diferentes perfis, oriundos de diferentes espaços sociais e classes econômicas.

se por um lado os cursos são recheados de filhas do proletariado e estudantes-trabalhadoras que fazem uso de financiamentos, programas ou descontos para estudar, há também a elite econômica das cidades, os filhos da burguesia, os setores mais bem remunerados das trabalhadoras e demais diferentes agentes sociais dividindo espaço (e opinião e visão de mundo e noção de futuro profissional) nos espaços acadêmicos e militantes.

porém, percebe-se comumente que as alunas mais engajadas, com maior “conhecimento” formal político, com mais disponibilidade, sobretudo, mas também com mais vontade ativa de militância no Movimento Estudantil não se encontram entre os setores mais precarizados e menos privilegiado das estudantes.

são as meninas e mulheres, as pessoas LGBT+, as filhas da classe média e da pequena-burguesia “com consciência social” (sic) as que mais constroem as entidades e as lutas estudantis, enquanto aqueles e aquelas a quem a tirania da universidade privada e seus aumentos de mensalidade, os cortes  nos programas sociais e de permanência, as opressões diversas nos campi e os avanços liberais-conservadores sobre a educação e o país, no geral, mais prejudicam, ficam alheios ou muito pouco comprometidas com as lutas, os movimentos e o cotidiano da militância, seja por uma questão logística, seja por tempo, seja por acesso a conhecimento ou por não-identificação com as causas.

se os centros acadêmicos são ocupados cotidianamente pelo setor de estudantes que têm mais tempo e mais possibilidade de passar o tempo na universidade, não é sinal de que o grosso do corpo discente não possa ou não deva engajar-se com as lutas que fazem sentido e que beneficiam, com ganhos práticos e com aprendizados políticos, justamente a quem não pode militar.

sobretudo, é tarefa das estudantes que desfrutam do privilégio de não precisar trabalhar ou do privilégio do tempo “livre” que dediquem-se com o maior afinco e a maior disciplina possíveis à construção e fortalecimento das entidades e movimentos estudantis.

Resistência Popular Estudantil