Criatividade e comunicação na era global

Margarita Padilla – programadora de computadores na cooperativa de trabalho associado Dabne, e autora do Kit da luta na internet (Traficantes de Sonhos)iTexto publicado na revista Libre Pensamiento (vinculada à CGT Espanhola) na edição 81, invierno 2014/2015 – Dossier: Impactos de las nuevas tecnologías sobre el control de nuestras vidas

Arte: Maxinie

Em 1º de janeiro de 1994, mesmo dia em que entrou em vigor o Acordo de Livre Comércio da América do Norte, um grupo de indígenas armados ocupou várias sedes municipais no estado mexicano de Chiapas. Assim começou a primeira guerrilha virtual na Internet.

Os velhos do lugar vão se lembrar como aquele primeiro de Janeiro de 1994, mesmo dia que entrava em vigor o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), um grupo de indígenas armados ocupou várias sedes municipais do Estado mexicano de Chiapas. Seu objetivo: a tomada do poder? Não, apenas algo mais difícil: um mundo novo.ii

Eu gostaria que você tentasse, por um momento, relembrar qual era seu equipamento tecnológico por volta dos anos noventa. Levante as mãos quem em 1994 tinha um computador pessoal, modem e conta de e-mail! Pouca gente, não é mesmo?

Uma nova caixa de ferramentas

Considerada a primeira revolta contra o neoliberalismo, temos que agradecer ao zapatismo, entre tantas e tantas outras coisas, a audácia com que conseguiu colocar em crise as formas tradicionais de ação política. De que forma esses homens e essas mulheres de verdadeiii iam construir um mundo novo?

É tamanha a criatividade do movimento zapatista que fica difícil, para uma ordenação lógica, discernir quem nasceu primeiro, se foi o ovo ou a galinha? Foi primeiro armar um discurso novo e depois disseminar ele pela internet? Foi primeiro uma concepção sobre como lutar em um mundo globalizado e logo depois a construção discursiva? Foi primeiro uma ressignificação do indígena e do guerrilheiro, e todo o resto veio em consequência?

Seja como for, existe algo que está claro: o zapatismo encarnou um discurso radicalmente distinto ao da esquerda tradicional e, ademais, foi um dos primeiros a utilizar a internet para conseguir solidariedade e estender as lutas pelo mundo. Convido o leitor e a leitora, a pensar se uma coisa poderia ser feito sem a outra.

Subcomandante Marcos entendeu que, na luta por simpatia e apoio das pessoas, seu computador portátil ia ser muito mais efetivo que sua Kalashnikov. Poucos dias depois deste primeiro de janeiro, as rajadas de palavras substituíram os assobios das balas. Nunca uma guerrilha tão débil, do ponto de vista político e militar, recebeu uma atenção midiática tão grande. Doze dias de filmagens garantiram ao Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) mais cobertura informativa que trinta anos de guerra na Guatemala ou Colômbia.iv A chave? Um discurso (uma prática política) que, em sua forma e em seu conteúdo, teriam as qualidades que caracterizavam uma rede compartilhada. Um discurso em si mesmo reticular, portanto, “amigável” para as redes. Vejamos como.

Falar de Coração para Coração

Comecemos observando como o zapatismo fala uma linguagem próxima do povo e que não precisa ser vulgar. (Eles devem ver que somos homens e mulheres simples e comuns). Longe de utilizar a linguagem da especialização política das esquerdas, fala diretamente ao coração das pessoas (Nascemos na guerra com o ano branco e começamos a trilhar este caminho que nos levou até o coração de vocês, e hoje traz vocês até o nosso coração).

Os documentos dirigem-se a alguém em específico, o que é explicitado no cabeçalho. Não falam a uma entidade impessoal e abstrata, mas para algum periódico, alguns governantes, a outras organizações indígenas, às organizações sociais… O outro, o receptor da mensagem, está “ali” reconhecido em carne e osso, tem rosto. O textos e comunicados mudam de registro de acordo com seus destinatário. Evitam a generalização discursiva. Não falam a todos da mesma forma. Então, vamos encontrar contos, relatos místicos, cartas pessoais, comunicados, crônicas, biografias, panfletos, fábulas de animais, projetos de lei… Variações continuas e poesia em abundância.

O discurso político tradicional está construído sob uma forma polêmica que se repete à exaustão. Tanto faz se trata-se de uma intervenção no Parlamento como a inauguração de um hospital ou de um comício eleitoral, a graça consiste em desqualificar e anular o adversário. No entanto, para o zapatismo o adversário é reconhecido e não desqualificado pelo sistema (O senhor Cárdenas veio nos ouvir e o fez com atenção e respeito. Esperamos que a palavra verdadeira dos homens e mulheres sem rosto sejam escutadas e tenha um lugar em seu coração).

Além disso, o político, das esquerdas ou das direitas, se julga ser alguém que sabe tudo, capaz de dar aulas de sua tribuna. O falar zapatista, pelo contrário, não só é humilde em suas formas (Por trás estamos os mesmos homens e mulheres simples e comuns que são parecidos em todas as raças, se pintam em todas as cores, falam em diferentes línguas e vivem em diversos lugares), mas que pratica uma disposição especial à escuta: caminhar perguntando, mandar obedecendo, ir ao passo do mais lento para irmos todos juntos…

É frequente, pela esquerda, que os discursos se dirijam a outros iguais com quem falam (um líder sindical se dirige a operários, um líder estudantil a estudantes…). Não acontece isso no zapatismo, o qual faz um trabalho forte de construção e reconhecimento de um destinatário plural (somos iguais a vocês. Por trás de nós, estão vocês. Por trás de nossos passamontanhas está o rosto de todas as mulheres excluídas. De todos os indígenas esquecidos. De todos homossexuais perseguidos. De todos os jovens depreciados. De todos os imigrantes atacados. De todos os presos por suas palavras e pensamentos. De todos os trabalhadores humilhados. De todos os mortos do esquecimento).

Podemos notar como todas estas viradas vão na linha não somente de criticar o neoliberalismo, mas sobretudo, de mudar o marco das referências. Ou seja, de criar o novo. E é assim que, como disse o filósofo, não necessitamos comunicação. Pelo contrário, temos demais. Necessitamos criatividade. Necessitamos resistência ao presente. É assim, não com comunicação mas com criação, que o zapatismo conseguiu travar uma verdadeira guerra de tinta na internet. Uma internet que, apenas naquele 1994, no México estava abrindo a usos comerciais.

Crescer por meio das palavras

Nem se passou pela cabeça do governo mexicano a necessidade de desenhar uma estratégia comunicativa direcionada ao levante zapatista na internet, enquanto tanto os zapatistas como seus grupos de apoio consideraram a guerrilha de comunicação como um espaço de luta tão ou mais importante que o militar. “Consideraram”, neste contexto, significa que inventaram, criaram, já que em uma internet ainda em fraldas não havia exemplos em que se basear. Se constituíram como a primeira guerrilha virtual.

Paradoxalmente, do interiorano e pouco tecnológico Estado de Chiapas se prefigurou uma nova forma de luta própria do século XXI: aquela que batalha por criar um novo quadro de referência, isto é, por mover a linha divisória que cada qual traça entre o tolerável e o intolerável, rompendo os estereótipos comunicativos e amalgamando conflitos globais e espaços cotidianos. (Algo similar me parecer acontecer no Egito, na chamada Revolução do Facebook: grupos sociais não especificamente conectados para os quais a exclusão digital não funciona como tal, mas muito pelo contrário).

Simpatizantes não coordenados entre si começaram a traduzir e difundir cada texto, cada comunicado, fazendo-nos chegar aos meios de comunicação. Formou-se uma extensa rede mundial de apoio a sua luta. Pela primeira vez cabia a possibilidade de burlar a mediação dos centro de poder de comunicação e midiático. Esses centros de poder já não podiam controlar as interações diretas entre muitos, que podiam “conversar” diretamente entre si, e isso permitiu que o discurso oficial e dominante fosse vencido. O levante se fez visível e seu dia a dia podia ser seguido pelo computador pessoal.

Pela primeira vez muita gente tinha disponíveis canais para burlar os obstáculos espaciais, se colocar em contato direto e manter conversações virtuais. Muito além dos rifles e das balas, estava-se criando, ocupando e povoando um novo espaço de conflito: o espaço virtual. Um espaço feito para a palavra e para a imagem. A imagem encapuzada de subcomandante Marcos, com seu cachimbo fumegante, flutuava pelo ciberespaço. E o zapatismo foi crescendo por meio das palavras.

Nesse espaço virtual, abriram-se caminhos para formas particulares de organização, constituindo genuínas comunidades virtuais aptas com a operacionalidade necessária para organizar encontros presenciais globais. O levante zapatista não era uma notícia espetacular e midiática consumível através da imprensa e da televisão. Oferecia um espaço global de organização e de mudança em que qualquer um podia ser ator direto e protagonista dos acontecimentos.


Em um caminho de ida e volta, o zapatismo, enraizado localmente, alcançou apoio global, e ao mesmo tempo potencializou e ativou inúmeras outras lutas locais distribuídas por todo o mundo, reconectando de forma harmoniosa o local com o global. E, como se não bastasse, temos que acrescentar um detalhe muito surpreendente: O zapatismo não tinha na internet uma página oficial na web. Simplesmente disseminava seu discurso renunciando ao controle.

Reconhecer a Matriz

Se me fiz explicar, tomando o zapatismo como momento inaugural do agenciamento entre pensamento, ação política e novas tecnologias de comunicação, é porque, como a internet e a web ainda estavam livres do avanço das grandes corporações, a criatividade zapatista pôde se desenrolar livre de qualquer tipo de cooptação mercantil. Em uma web que, em 1994, praticamente estava livre de usos comerciais, essa nova forma discursiva pôde florescer em todo seu esplendor e inaugurou uma espécie de matriz ou de padrão cujo surgimento recorrente aparece uma ou outra vez em distintos acontecimentos, ainda que algumas vezes aconteça de forma parcial ou ambígua.

A lista de acontecimentos para reconhecer essa matriz seria muito grande. Convido o leitor e a leitora a elaborar a sua. Por exemplo, quando ocorreu os atentados às Torres Gêmeas, o 11 de setembro de 2001, esse acontecimento sem precedentes coincidiu ao mesmo tempo com a expansão dos blogs pessoais (o que depois foi nomeado como blogosfera). Muitas pessoas publicaram em seus blogs (até o momento dedicados a assuntos muito pessoais, como seus gostos ou atividades quase privadas…) o que estavam vendo em campo, fornecendo dados, relatos, fotos e vídeos. E muitas outras pessoas aderiram a esses blogs pessoais como fonte de informação mais confiáveis que os periódicos, sempre suspeitos de falta de independência.

Porém não se tratava apenas de comunicação. Familiares de vítimas, dispersos por todos os estados, puderam entrar em contato direto, pessoa a pessoa, através de publicações em seus blogs, colocando-se e expondo-se publicamente como afetados pelo 11M. Desses contatos surgiu a associação Peaceful Tomorrows (Paz para o Amanhã), que se opôs ativamente à intervenção militar dos EUA nas guerras do Iraque e do Afeganistão, organizando mobilizações e solidariedade com as vítimas de suas guerras e ampliando a luta para outras causas, como por exemplo, o fechamento de Guantánamo. Neste caso, o engajamento em um acontecimento por sua vez político e vital, com a comunicação pessoal e direta junto com a tecnologia “blog” se associaram para mudar o marco de referência da paranoia por segurança e das políticas de guerras justificadas por ela.

Em outros acontecimentos vividos em primeira pessoa, mais próximos e melhor conhecidos por mim, tais como os atentados de Atocha o 11M de 2004 ou o próprio 15M, aflora a mesma matriz: engajamento em primeira pessoa; iniciativas anônimas, sem autoria; aliança com alguma tecnologia concreta, a mais idônea ou a mais acessível (as mensagens SMS no 11M, Twitter no 15M); comunicação pessoa a pessoa; rechaço à prepotência do discurso político tradicional; linguagem simples e direta, palavras de uso comum; mistura do pessoal com o coletivo, do público com o privado; mescla de registros, sensibilidade, poesia; perda da formalidade, uso de paradoxo, da tergiversação e do chiste; criatividade e construção específica de cada um dos “outros” (assinalando a responsabilidade política e freando o discurso racista, no caso do 11M; trabalhando ativamente pela inclusão dos 99%, no caso do 15M)…

A título de informação provisória, neste ponto, diria que as redes são algo mais que um canal de comunicação e muito mais que um papel de jornal colado na tela do computador. As redes são mais parecidas a um espaço social, a um ambiente ou, se quiserem, a uma população, a uma cidade do que a um meio de comunicação, ainda que esse ambiente contenha uma dimensão comunicativa. E no ambiente-rede, no espaço-rede, a comunicação que mais comunica é a que se corresponde com as práticas da rede. Dito de outra maneira, se quiser ou necessitar falar a partir de um lugar central e quiser ou necessitar controlar a comunicação, a rede não é lugar propício. Poderá usá-la como alto-falante, porém esse alto-falante terá ruídos e se quebrará continuamente, porque estará lhe dando uma funcionalidade forçada, que não lhe é própria. Quando uma rede é rede, para o bem ou para o mal, todos perdemos o monopólio (ou os micromonopólios) da comunicação e da criação de sentido.

foto: Heriberto Rodríguez

Reconectar

O avanço das corporações sobre a internet chegou para complicar tudo. Quando no 11 de março de 2004 comecei a receber quantidades de chamadas telefônicas e SMS que meus amigos me enviavam para saber se, em Madrid, me encontrava a salvo das bombas, ninguém criticava o fato de que, com essas chamadas específicas (que foram muitíssimas) as operadores estavam fazendo negócio. Esse assunto não estava sobre a mesa. Nesse caso específico, nesse momento específico, não houve uma preocupação social a respeito.

No entanto, o avanço das corporações e da competição entre elas, a grande concentração em umas poucas megaempresas que na prática são monopólios, a perda de privacidade e a venda de dados pessoais, a possibilidade de espionagem em massa, a publicidade feita sob medida.., tudo isso está criando uma consciência de ameaça que no momento se apresenta muito pouco definida, muito pouco concreta para que se possa ativar planos massivos de contenção ou de substituição no uso cotidiano dos “serviços” proporcionados por essas megacorporações. Se enxerga o problema, porém não se vislumbra uma solução. Ela há de chegar.

A esta ameaça difusa deve-se adicionar outros tipos de problemas. Muitas pessoas, e especialmente as de pensamento crítico, afirmam que nas condições de aceleração, imediatez, fragmentação e caos que a comunicação está produzindo, é impossível exercer a crítica: nas redes não se pode fazer crítica tal como a praticamos, somente é possível circular informação superficial, sensacionalista, emocional e oca.

Sob este ponto de vista, os novos suportes e formas de comunicação impedem o aprofundamento e a reflexão, condições para a elaboração de um pensamento crítico. Falando de modo pouco sutil, o pensamento crítico necessita de textos longos, ordenados e lineares (ou seja, de tempos longos, ordenados e lineares; isto é, de vidas estáveis). Evidentemente, nas redes e no mundo essas tendências estão em retrocesso.

Minha principal preocupação é afrontar de forma ativa e criativa estes problemas, sem impor resistência a transformações que parecem imparáveis e que a meu ver trazem muitas coisas boas. Por isso me ajuda, de vez em quando, afastar simbólica e concretamente meu smartphone e viajar virtualmente aos primeiros tempos, quandonão mais de vinte anos, as coisas no ciberespaço me pareciam mais claras e transparentes. Não o faço por nostalgia. O faço para ir um pouco mais além dos efeitos da superfície que provocam tanta corporação corporativa e tanta dispersão mental, e recordar como era a matriz de onde viemos para tentar reconectar com as possibilidades de criação de luta.

Tradução: Felipe Suna

Revisão: Ivan Thomaz de Oliveira

ii Escrito em uma carta do subcomandante Marcos a Gaspar Morquecho.

iii Expressão que com frequência se autodenominam e que se pode ler-se, entre outros muitos textos, em Palavras do Comando Geral da EZLN no ato de Inicio do Primeiro Encontro Intercontinental pela Humanidade de contra o Neoliberalismo.

iv Extraído de Itina Lotkova: La ciberguerrilla zapatista. Análisis del uso de Internet para la difusión del movimiento zapatista.