Contradição e ideologia na série Irmandade

A série Irmandade, disponível na Netflix, estrelada por Seu Jorge, que interpreta o líder de uma facção criminosa, é interessante e contraditória. Trata-se, em suma, de uma série que em duas temporadas mostra a derrocada da organização tal como foi fundada por Edson (Seu Jorge) e seu parceiro Carniça, a Irmandade, e a ascensão de uma nova mentalidade dentro do próprio grupo. Acompanhamos, ao longo da narrativa, o mundo periférico e criminal, com sua violência imanente, e com seus princípios específicos.

A Irmandade se estrutura a partir do proceder, que é um código de conduta periférico urbano, baseado na humildade, na honra da palavra, não permite traição nem delação, e visa à dignidade e preservação da vida em um contexto violento, cuja presença estatal se dá apenas através da figura repressiva da Policia Militar. Os trâmites e relações entre os membros são balizadas pelo proceder.

Eis que surge Cristina, a irmã de Edson, cujo passado familiar é de relações apartadas. Ela acaba entrando na Irmandade, momento em que se inicia a contradição da série. Cristina começa a subir na organização através de mentiras e dissimulações; ela nunca segue o proceder. Esta é a primeira e mais importante contradição, que terá consequências que adiante falarei. A segunda é que a série se apresenta com uma estética realista, sem contudo fetichizar a violência, o que é um acerto. Porém, o fato de Cristina aumentar seu capital simbólico dentro da organização, tendo poder de influência grande entre os demais, isso somado ao fato de que nunca seguiu os princípios que orientam aquela conduta, é demasiado inverossímil, logo antirrealista. Este é um ponto fraco importante do objeto estético.

O fato é que por causa das atitudes da Cristina, a organização vai ladeira abaixo, muitos morrem, ela delata inúmeras vezes, sem que ninguém desconfie. O ponto central é que as pessoas mais importantes da organização, incluso aí o próprio Edson, são vítimas da Cristina, que funda novamente, por assim dizer, a organização, a partir de outro viés, embora ainda utilize nominalmente a palavra ‘proceder’. Ao ter esse desfecho, a série, que pretendia mostrar humilde e verdadeiramente a interna da organização, pautada por critérios e princípios dignos – e aqui não há justificação para crimes ou condutas, apenas uma observação social de como um grupo funciona, se estrutura e se relaciona –, acaba indicando que aqueles valores pouco importam, desvalidando um código de conduta altamente compartilhado pelas periferias urbanas brasileiras, ao menos do sudeste pra baixo. Pior, endossa um tipo de organização criminosa que preza pelo assistencialismo e não pela crítica social, como era nos tempos do Edson, além de não ter o teor antissistema ou antipolícia.

A série, portanto, ideologicamente, é uma defesa das estruturas, representada pela vitória de Cristina no mundo do crime, ao passo que o discurso revolucionário de Edson é relegado ao esquecimento, mutilado por dentro. O proceder é rebaixado à perfumaria fútil, quando deveria ser entendido como mediador social.

Rodrigo Mendes