Um dia escrevi um texto sobre duas possibilidades de realização estética do cinema brasileiro hoje – um hipótese, claro, e sem corpus algum, uma suposição –, a saber, a) um viés social, que centra a sua estrutura e forma de construir a realidade ao apontar as assimetrias estruturantes da sociedade brasileira, que é, de maneira intrínseca e tensiva, racismo, machismo e dividida em classes sociais; b) o outro olha para dentro, para o indivíduo, uma pessoa, com seus problemas internos, familiares, etc. – o problema se dá na esfera subjetiva e ali percebemos os problemas históricos. Acho que O som ao redor é uma síntese interessante desses dois tipos.
O cinema tem várias abordagens narrativas, algumas com um narrador, manifesto seja em palavras escritas como num slide contemporâneo (os filmes mudos até os anos 40, mais ou menos), seja com uma voz externa que vai contando a história (alguns filmes antigos do Kubrick, como O grande golpe, ou Tropa de elite aqui no Brasil), ou algo de si (Laranja mecânica, por exemplo). Alguns não têm narrador, apenas a sequência de imagens montadas em uma sequência linear ou não.
Lá nos seus primórdios, na França da virada do século 19 para o 20, os irmãos Lumière criaram o cinematógrafo, uma câmera que gravava uma sequência de imagens em movimento, gerando então a possibilidade do cinema existir. Há gravações deles dessa época que são fragmentos de 11 segundos, como o famoso em que grava a chegada de um trem à estação (https://www.youtube.com/watch?v=3RYNThid23g). Esta imagem em movimetno, uma revolução à época, assustava as pessoas, que saiam correndo ao ver na tela um trem se aproximando. Não havia a tal “quarta parede”, uma linha divisória imaginária que faz com que entendamos que o filme é um filme, não a vida real, o livro é um livro, não a vida real.
Esta experiência quando do surgimento da possibilidade do cinema já representava a sua força maior, ou sua força primeira (porque o cinema falado, embora tenha sido recebido com ressalva quando apareceu, hoje sabemos que não há demérito algum na voz no cinema, pelo contrário). Que força é essa? A da imagem. As imagens transmitem toda a força da sétima arte, e este é seu diferencial em relação a outras artes: ser imagem em movimento. Há uma cena fantástica em O encouraçado Potemkin, depois homenageada em Os intocáveis (não o francês, o estadunidense sobre o grupo que prendeu Al Capone), que não tem outro tipo de possibilidade de representação que não com fortes imagens enquadradas do lugar certo e intercalada com a montagem: a grande força do cinema, então, era a gravação de imagens em movimento montadas em uma narrativa. Esta é uma qualidade sui generis do cinema, é o que o destaca enquanto especificidade do gênero filme.
Rodrigo Mendes