“Seu comercial de TV não me engana
eu não preciso de status nem fama”
Das composições do Racionais MC’s, “Capítulo 4, Versículo 3” é certamente um ponto alto. Devido à sua agressividade e combatividade, na forma e no conteúdo, o grupo imprimi vitalidade à luta de resistência negra aos ataques constantes (desde a escravização) das classes dominantes, poder Estatal e midiático. Através de subversões, intimidações e posicionamento, a letra quilométrica busca o esclarecimento das relações sociais entre negros e brancos, mas também da periferia em relação ao centro. O sistema capitalista faz uso constante da mídia como uma das formas de alienação da sociedade, visando manter a ordem social e perpetuar os lugares das classes na sociedade. O Racionais surge dessas tensões de classes, do racismo estrutural, e procura com sua comunidade o combate a essas opressões.
As estatísticas iniciais demonstram o público ao qual as canções em maioria se direcionam: àqueles irmãos negros mortos todos os dias pela polícia (“A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente / Em São Paulo”) que são o primeiro alvo de suas letras, buscando conscientizá-los. A união é o primeiro passo para a sobrevivência e luta, e isso se mostra na temática de suas letras, envolvendo geografia e contexto das suas periferias, comum aos irmãos que escutam; acontece nos shows, quando não só eles ficam em cima do palco (seus raps são uma extensão da periferia: não existe a hierarquia do popstar da TV que simula uma vida boa, sem problemas – estão colocados horizontalmente a seus manos que os escutam); figura também, nesta canção, em passagem de diálogos, como a que Mano Brown e Ice Blue conversam, logo após o primeiro refrão, sobre um mano que foi visto usando drogas. Carregam a ideia de companheirismo, de coletividade. São “50 mil manos” junto a Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e Kl Jay.
A coletividade é contrária à propaganda. Esta produz um efeito de anestesia, mentiroso, superficialmente construído para dar a falsa sensação de vida confortável. Em um mundo alienante, no qual o espetáculo e a propaganda preenchem as fraturas sociais, emerge a dicção do Racionais para desalienar, para libertar, emancipar. O rap do Racionais tira o véu da democracia racial, das mentiras de igualdade social e coloca o dedo na ferida. “Violentamente pacífico, verídico”, através das palavras, que são suas armas, pretendem acabar com o sistema opressor formado pelas elites branca, o Estado e a mídia.
Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor
Pelo rádio, jornal, revista e outdoor
Te oferece dinheiro, conversa com calma
Contamina seu caráter, rouba sua alma
Depois te joga na merda sozinho
Transforma um preto tipo A num neguinho
Os versos acima talvez sejam os mais precisos e sintéticos da música para exemplificar o ataque aos meios de comunicação alientantes. O disco é de 1997 e não contava com o papel da internet como meio massificador de distribuição de informação que é hoje, mas de certa forma o conjuga em sua crítica. A propaganda alivia as tensões e busca uma emancipação superficial, é anti-conflito. O Racionais, com sua entoação rápida, como que representando o som de rajadas, de tiros, assume a linha de frente do conflito, não se esconde.
A luta não se dá sozinha, e a combatividade do grupo passa pela aceitação do ouvinte principal (seus manos). O direcionamento claro do interlocutor (“irmão” e “te”) nos versos acima são peças fundamentais. O discurso, nesse caso, é dirigido claramente, com intuito de conscientização. As letras do grupo são claras, buscam a afirmação e não a dubiedade. São muitos os momentos em que eles apontam o dedo para quem estão falando, como “seu carro e sua grana”, e elas cumprem o papel de demonstrar e exigir o posicionamento frente às diversas situações relatadas. Ao apontar o dedo, o grupo obriga o ouvinte a se posicionar. O direcionamento do canto do Racionais varia de acordo com a passagem, podendo ser o mano negro ou o “branquinho do shopping”. Nos versos acima, quem canta pretende aconselhar seus iguais a ao menos estranhar a maneira como os meios de comunicação hegemônicos atuam; o efeito final e mais radical dos versos seria a destruição dos meios de propaganda mentirosos. Além disso, está também presente a lógica perversa do capitalismo da transformar tudo em objeto, em mercadoria. “Depois te joga na merda sozinho” é, de maneira crua, a maneira como o capitalismo trabalha, descartando quando o objeto/ser humano não se faz mais produtivo.
Ao lado da narrativa conscientizadora está a sua inversa, a de ameaça constante. “Eu sou bem pior do que você tá vendo”, “Vim pra abalar seu raciocínio”, “Seu comercial de TV não me engana” e “Efeito colateral que seu sistema fez” (grifos meus) são alguns dos exemplos no qual o quem canta se coloca firme contra o inimigo. Posicionando-se, mostra aos seus irmãos (que aparecem na canção enquanto interlocutores na primeira narrativa, a conscientizadora) o inimigo, a classe a ser combatida. A burguesia branca, que compactua com o genocídio negro junto ao Estado e seu braço armado, a polícia militar, é colocada contra a parede, encurralada. (Uma pergunta que se coloca: como que um disco tão radical como Sobrevivendo no Inferno vendeu mais de um milhão de cópias? Como se relacionam agressividade e vendas?)
Diagnosticado o problema da propaganda e da alienação, os interlocutores são chamados a se posicionar. Conjugado isso, chega ao estágio final um dos objetivos do rap do Racionais, a desalienação. Descortinar a simulação de vida apresentado pela propaganda é o primeiro passo para emancipação e com isso é possível a busca por mudanças objetivas no mundo real. Acima de tudo, o Racionais busca a extinção das opressões que eles e seus manos em todas as periferias sofrem (“Periferia é periferia” e “Salve” demonstram bem a semelhança das comunidades pobres pelo país e a necessidade de união entre elas).
O combate à alienação se faz presente já nas estatísticas iniciais, quando mostram dados materiais que são apagados nas grandes mídias para manter a ordem social. Dados que demonstram claramente o racismo estruturante da sociedade brasileira e do por que o rap se preocupar com isso. Sobrevivendo no Inferno se mostra tão presente, mesmo depois de vinte anos. O racismo é problema ainda mais antigo e, na música popular, é com o Racionais que emerge com força e que é confrontado de frente, com objetivo de por um fim nesta e em outras opressões.
Rodrigo Mendes
Referências:
ALMEIDA, Silvio. “O que é racismo estrutural?”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PD4Ew5DIGrU>
GARCIA, Walter. “Elemento para a crítica estética dos Racionais MC’s (1990-2006), em Idéias, nº7. Campinas, SP, 2013, p.81-110.
______________.“Ouvindo Racionais MC’s”, em Teresa: revista de literatura brasileira, vols. 4 e 5. São Paulo, 2004, p.166-180.
KEHL, Maria Rita. “Radicais, raciais, racionais: a grande fratria do rap na periferia de São Paulo”, em São Paulo em Perspectiva, vol. 13(3). São Paulo, 1999.
______________.“Muito além do espetáculo”. Rio de Janeiro, 2003.