Por 13 votos a oito, a Câmara de Vereadores de Florianópolis aprovou hoje um pacote de medidas formuladas pelo prefeito reeleito, Gean Loureiro (DEM), que impacta diversas esferas da administração municipal e a prestação de serviços públicos. O “pacotaço”, submetido em 18 de janeiro e aprovado às pressas, apareceu em meio à pandemia de covid-19 e uma temporada de chuvas intensas em Florianópolis, que já deixaram dois mortos e dezenas de desabrigados na última semana.
Embora uma análise mais aprofundada das centenas de páginas incluídas nas diferentes propostas tenha sido inviabilizada pelo rito acelerado, movimentos sociais e vereadores da oposição ressaltaram pontos considerados extremamente nocivos e prejudiciais para a cidade. O ponto mais debatido foi a desestruturação da empresa pública Comcap, responsável pela coleta de lixo, capina, varrição e limpeza de valas, que irá reduzir drasticamente os salários e ainda abrir caminho para a terceirização e privatização do serviço. No entanto, também faziam parte do pacote a venda de áreas públicas orçadas em R$5 milhões de reais; a inclusão de 12 representações empresariais no Conselho Municipal de Educação; a transferência da política de assistência social para uma fundação de voluntariado vinculada à esposa do prefeito; e brechas ilegais no Plano Diretor que ofecerem menos entraves às obras das grandes empreiteiras, enquanto facilitam medidas de despejo e demolição de moradias populares em ocupações.
A sessão e as expectativas
Por esses motivos, a sessão foi acompanhada de perto por cerca de 500 pessoas, a maioria vinculada a sindicatos e movimentos sociais da cidade. A maior presença foi da categoria da Comcap, filiada ao Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal de Florianópolis (Sintrasem), que já havia deliberado uma greve por tempo indeterminado no dia 20 de janeiro e se colocado na linha de frente contra o pacote de medidas. Segundo relatos da categoria, a empresa se tornou alvo do prefeito por ter maior nível de organização sindical e ter protagonizado algumas greves na gestão anterior. Militantes das ocupações de moradia da Grande Florianópolis também estiveram presentes, dando prosseguimento à sequência de manifestações realizadas em 2020 contra projetos que possibilitariam o despejo sumário das comunidades.
Na sessão de hoje, foi julgado o parecer sobre a proposta de Gean Loureiro, apresentado pela maioria de vereadores que faz parte da base aliada, assim como pareceres de vista elaborados por vereadores da oposição (PSOL e PT). Vereadores reclamaram do curto tempo para debate, tratando como atropelo a forma como a discussão foi conduzida pela presidência do plenário, Roberto Katumi (PSD).
“Colegas vereadores, vocês sabem que o que está acontecendo aqui é uma verdadeira estupidez, uma agressão. E eu quero aqui dizer que a democracia está profundamente ferida”, disse o vereador Afrânio Boppré (PSOL). “A impressão que eu tenho é que não foi o Gean Loureiro que escreveu esse projeto de lei, não foi a sua equipe. Isso aí veio pronto das entidades empresariais”. Para ele, foi esse setor “que botou uma coleira no Gean [e] alguns vereadores aqui são tercerizados dessas empresas”.
Segundo a oposição, as proposições apresentadas no “pacotaço de maldades” possuem, inclusive, ilegalidades de tramitação e serão alvo de contestação judicial. No extenso arcabouço sobre o qual o pacotaço versa, há projetos de lei que a Procuradoria Geral julga fora dos trâmites legais exigidos. Entre eles, as alterações no Plano Diretor e no Código de Obras do Município feitas sem garantia de audiência pública junto à sociedade civil e ignorando a necessidade de análise do impacto que a alteração causará na infraestrutura urbana e comunitária. Além disso, a Procuradoria aponta que, por tratar do mesmo assunto em diferentes leis complementares e com isso gerar duplicidade, a proposta de Gean fere norma federal e municipal que trata do processo de elaboração das leis.
Embora o prefeito Gean tenha sido reeleito em primeiro turno e tenha formado maioria na Câmara com facilidade, a expectativa da categoria da Comcap era de trazer alguns votos para seu lado. Além da força da greve, que fez a cidade estar repleta de lixo e que recebeu apoio entidades de todo o país, o cenário de calamidade pública pelas chuvas justificava um adiamento de tramitação. Ainda assim, o bloco governista se manteve sólido e ainda rejeitou a totalidade das emendas feitas pela oposição. A imagem abaixo, produzida pelo Sintrasem, apresenta o placar final da votação.
A disputa judicial e o valor da Comcap
Antes da votação no final da tarde, uma notícia trouxe um clima de euforia para a mobilização, animando os tambores, o estouro dos rojões e os cantos pelo encerramento da sessão. A Justiça do Trabalho decretou a suspensão do contrato firmado pela Prefeitura com a empresa privada que assumiu o serviço de varrição e capina, reconhecendo a motivação da greve como legítima e as medidas da Prefeitura como uma quebra do último acordo coletivo. Em 2019, o próprio Gean havia assinado que não haveria subcontratação ou quaisquer forma de tercerização dos serviços prestados pela Comcap. A greve instaurada questiona, justamente, a quebra do acordo, que envolve também reajuste nos salários segundo a inflação e aumento no vale-alimentação, medidas não cumpridas.
Na tentativa de desmobilizar as trabalhadoras e ganhar a opinião pública a seu favor, o prefeito fez uma campanha intensa de difamação da greve junto à mídia empresarial, acusando as trabalhadoras da Comcap de terem “superprivilégios”. Durante a sessão, o prefeito foi questionado no plenário e nas ruas por sua colocação, visto que seu salário está por volta de R$27 mil reais, dez vezes o valor do salário de uma funcionária com carreira de doze anos na empresa pública, segundo contracheque apresentado pelo Sintrasem. Além disso, outro argumento utilizado para sustentar o projeto de reestruturação é o custo dos serviços prestados pela Comcap, que seriam mais caros que em cidades onde a coleta de lixo é tercerizada. No entanto, segundo dados trazidos pelo presidente do Sintrasem, o serviço oferecido pela Comcap é o mais barato da região, chegando a custar quase a metade do valor cobrado para a população na Palhoça (SC), onde não há coleta seletiva.
A gestão de Gean Loureiro
O prefeito colecionou acusações durante seu mandato iniciado em 2017. Em 2019, ele chegou a ser afastado do cargo e preso pela Operação Chabu da Polícia Federal, acusado de crimes de corrupção passiva e organização criminosa. Segundo a PF, Gean ajudava no vazamento de informações sobre operações policiais em andamento. No mesmo ano, foi exposta fraude em um contrato de R$30 milhões com a Associação São Bento (ASB), para quem o prefeito entregou a administração de cinco creches municipais. Essa Organização Social (OS) seria uma laranja, que já responde por processos de fraude em outras unidades de saúde no Rio Grande do Sul e também em Santa Catarina.
Já em 2020, durante a campanha para a reeleição, Gean foi acusado de estupro por uma funcionária pública, tendo o vídeo do ato sexual, realizado dentro de prédio público e em horário de expediente, vazado na internet. O prefeito, na época, assumiu a relação sexual, mas alegou ter sido consensual. Além disso, no mesmo ano, a primeira dama e presidente da SOMAR, Cíntia de Queiroz Loureiro, foi investigada por desvio de verba pelo Ministério Público de Contas e o Ministério Público de Santa Catarina. A acusação é de que as verbas estariam sendo ilegalmente direcionadas para uma empresa privada do ramo de eventos.
Os próximos passos da disputa contra o pacote
Apesar da derrota na Câmara de Vereadores, os manifestantes presentes nas ruas afirmam que a luta contra o pacotaço ainda não acabou. Por enquanto, a Comcap segue em greve e uma nova assembleia acontece amanhã (27) de manhã para debater os rumos do movimento. No ato de hoje, o ex-vereador e militante do Fórum das Cidades, Lino Peres, informou que a Justiça e o Ministério Público serão acionados para reverter as decisões, ainda que essas medidas dependam da capacidade de reivindicação e luta popular nos próximos dias. Se depender da animação dos tambores da vigília em frente à Câmara hoje, ainda há muito pagode pela frente.
A foto de capa é da Coletiva Bem Viver Floripa.