Não são poucas as trilogias de boa estatura no cinema europeu. Grandes diretores como Ingmar Bergman contribuíram para esse tipo de forma cinematográfica tripartida e às vezes sequenciada com a sua Trilogia do silêncio (1961-63). Há também as trilogias do Leone, que infelizmente só assisti aos Era uma vez no Oeste (1968) e Era uma vez na América (1984); Antonioni, que é cantado por Caetano, também fez a sua famosa Trilogia da incomunicabilidade (1960-62), que o tempo ainda não me permitiu desfrutar. A Trilogia das cores (1993-4), como ficou conhecida, é a parte que cabe a Krzysztof Kieslowski, e é talvez sua obra mais famosa, junto à série Decálogo (1989) e aos Não matarás e Não amarás, ambos de 1988. Aqui, no entanto, falarei da forma que talvez seja diametralmente oposta à trilogia: o curta-metragem. Se na primeira o sentido da obra se dá pelo conjunto e um tempo mais extenso de filmagem, no curta é tiro curto, é aquela narrativa que se atém a algo bem específico e o mostra/narra rapidamente (há exceções, claro, como o primeiro curta de Tarkovski ou de Tarantino, que são narrativas facilmente desdobráveis em longas, mas que se encontram comprimidas). Falarei aqui do curta-metragem chamado Cabeças falantes (Gadajace glowy), dirigido por Kieslowski em 1980, bem menos conhecido, porém muito interessante.
O filme é todo dialógico, composto por mini-entrevistas com diferentes tipos de pessoas, desde o mais jovem ser humano a mais idosa mulher, questionando coisas muito simples e extremamente humanas, como o que a pessoa imagina que será no futuro, seus desejos e medos, em suma, questionando quem são aquelas pessoas. As respostas são incrivelmente diversas e a confusão sobre se se trata de atores ou não eleva o tom de verossimilhança. Interessante notar também que o filme retrocede no tempo, partindo do tempo presente da filmagem e chegando à virada do século 20 para o 19. Há um movimento de buscar no passado uma experiência? É uma recusa ao presente conjuntural da obra, 1980, época de Margaret Thatcher e de Guerra Fria, época chave da virada do capitalismo mundial? Wolgang Streeck, num texto chamado “O cidadão como consumidor”, aponta que o capitalismo nos anos 70 estava em transição de uma “economia de atendimento das necessidades para outra, de atendimento dos desejos”. Significa, dentre outras coisas, a supressão do sujeito, cuja consciência é embotada pelas mercadorias, que são sinônimas de desejos, sempre efêmeros. Há alguma ligação desta tese – pressupondo que seja profícua para o debate – e o filme em questão?
Kieslowski, certo é, não estava sozinho a buscar o sujeito no emaranhado do mundo globalizado. Cito dois grandes diretores contemporâneos de Kieslowski ao redor de 1980, época de Cabeças falantes, a saber: Ingmar Bergman e Andrei Tarkovski. Bergman nessa época fez, dentre outros, Face a face (1976) e Sonata de outono (1978), filmes carregados de subjetividade e tensões pessoais e interpessoais, sempre tornando complexos seus personagens, como de costume. Já Tarkovski, discípulo de Bergman, fez as maravilhas Stalker (1979) e Nostalgia (1983). Creio Tarkovski muda o foco dos filmes, cujos personagens são sim interessantíssimos, mas não objeta aprofundá-los em relações pessoais como faz Bergman, mas sim debater grandes temas, como a fé, a memória, o sacrifício (título de seu derradeiro filme) a partir de seus personagens, que são envoltos em imagens poderosas para compor suas obras.
É um trio e tanto que, através de suas obras fílmicas, buscou recusar o comodismo do cinema trivial e comercial. Kieslowski mudou a forma de filmar, borrando as bordas do quadro e amarelando a imagem, dando um tom abafado à imagem. Junto a isso, seus personagens complexos e às vezes controversos botam de pé seus filmes, cuja busca pela subjetividade, pela experiência, encontra eco nesse curta-metragem pela pluralidade de vozes e opiniões que compõem aquela gradiente. Em geral os curtas são esnobados, mas podem relevar, elementos importantes para o conjunto da obra do autor, grandes obras de arte.
Rodrigo Mendes