O Cone Sul, constituído pelo Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia, o que não é diferente dos demais países da periferia ou semiperiferia do sistema mundo, possui economias voltadas para a exportação de commodities. Commodity corresponde a uma mercadoria comercializada em bolsas de valores internacionais, em geral, matérias primas (soja, café, petróleo, ferro, alumínio e outros minerais, entre outros produtos). Exportam-se produtos sem agregação de valor, mas com valores monetários fora dos países de origem, muitas vezes em países industrializados e chamados desenvolvidos.(sugere-se ver trabalho do uruguaio Eduardo Gudynas, sobre o que ele chama de Novo Extrativismo).
No Cone Sul, o Império da Soja não para de crescer. Em compensação, em nosso país, importamos ou temos as áreas agrícolas reduzidas para a produção de feijão, arroz e trigo, enquanto as monoculturas de soja, com seus 35 milhões de hectares, alcançam dez vezes mais do que estas culturas alimentares. Em dez anos, desde 2007, a soja vem aumentando, quase sem parar, em mais de 70% sua área de plantio. Com as monoculturas exportadoras, em especial os grãos ou farelo de soja ou a pasta de celulose de monoculturas de eucalipto, vimos nossos biomas com biodiversidade (em especial Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica e Pampa) sucumbirem em paisagens de extrema uniformidade, o que a ativista ecológica e indiana Vandana Shiva atribui às Monoculturas da Mente. Na década passada, houve aumento de mais de 190% no uso de agrotóxicos no Brasil, sendo este aumento equivalente ao dobro do crescimento que ocorreu no mundo. Como resultado, nos tornamos o país que mais consome agrotóxicos, com o uso anual de mais de um bilhão de litros destes produtos na agricultura industrial, o que compromete a saúde humana, animal e ambiental, sem falar na perda de nossa sociobiodiversidade.
A hipertrofia do modelo sojeiro corresponde a um projeto econômico de ganância de parte de grandes transnacionais. Empresas que mandam nas áreas da agricultura, na pesquisa agropecuária, na economia e na política, utilizando-se em grande parte da venda casada de sementes e biocidas associados. A venda casada teoricamente é proibida em muitas economias, inclusive no Brasil. Trata-se de um processo de consumo crescente de insumos químicos e dependência dos agricultores presos ao modelo de exportação, o qual não necessariamente visa a produção de alimentos para os humanos. Produzem-se grãos que serão usados para alimentar animais em escala industrial, inclusive retirando-se gado solto no Pampa para produção destes grãos que alimentarão animais confinados em outros continentes, o que implica também em exportação de água, com a destruição de nossas diversas paisagens e modos de vida diversos.
Os gigantescos monopólios de sementes associados a monoculturas, que vendem no Brasil 45 bilhões de reais em biocidas (agrotóxicos), querem ter uma boa imagem, Daí, as propagandas de que o tal “Agro é Pop”. Entretanto, o setor não vai investir em tecnologias que reduzam o uso destes produtos, pois não aceitam redução de suas margens de lucro. Cabe destacar que os agrotóxicos são provenientes de armas químicas utilizadas na Segunda Guerra Mundial. É fantasia acreditar-se que as mesmas empresas que produziram o agente laranja (herbicida derivado do 2, 4 D), utilizado no desmatamento e morte de vietnamitas, na Guerra do Vietnã, na década de 1960, abandonem sua forma imediatista de lucrar e estanquem o atual círculo vicioso do mercado e dependência de insumos agrícolas. Em essência, não se importam com as pessoas, ao contrário, impõem esquemas de incentivo às monoculturas combatendo a sociobiodiversidade. Temos, em um país megabiodiverso como o Brasil e demais países do Cone Sul, múltiplas alternativas na agroecologia, longe de monopólios de sementes e seu modo totalitário e homogeneizador de paisagens. Infelizmente o agronegócio, chamado “locomotiva da economia”, está se convertendo em “Titanic”, mas poucos políticos enxergam isso.
A exportação de commodities, em larguíssima escala, inclui também o megaextrativismo via megamineração espoliadora e destruidora, como ocorreu na quase morte do rio Doce, em Mariana (MG), quando do rompimento da barragem da empresa Samarco (que pertence à Vale e à BHP). Trocamos quase duas dezenas de vidas e um rio com quase mil quilômetros de extensão para a exportação de milhões de toneladas de minério de ferro, quase bruto, com isenções, situação que também ocorre com o alumínio que vai parar na Ásia, junto com a soja. Para isso, governos, parlamentares e grande mídia propagandeiam a infraestrutura pesada que aprofunda a megaespoliação sobre o Cone Sul e outras zonas de periferia e semiperiferia mundial. E muitas vezes obtêm financiamentos do Banco Mundial e/ou do Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Para dar continuidade a seu poder, as grandes empresas do agronecronegócio (lembrando que necro significa morte) e da megamineração realizam doações bilionárias nas eleições, agora não mais por CNPJ (empresas), mas por CPF (pessoas físicas, utilizadas como “laranjas” doadoras desde empresas). Assim, tentam assegurar este esquema insustentável, por meio das bancadas dos agrotóxicos e do agrobusiness, o que chamamos de necroagronegócio, ou pela mineração pesada e espoliadora, o que também podemos chamar de mineronecronegócio.
Nesta condição, se agregarmos a questão da água, via privatização de seu uso ou imposição de megaobras de barragens de produção energética ou irrigação das monoculturas, poderemos falar em um processo anabolizante que nutre as bancadas desse poderoso agro-hidro-mineronegócio, que nos submetem à condição de reassumirmos um papel de colônias exportadoras, com isenções de impostos às grandes empresas de agrotóxicos e dos ramos de exportação de soja, celulose, minério de ferro, alumínio e petróleo.
O modelo também é Megaextrativista, não meramente extrativista, pois a escala de espoliação de matéria prima é gigantesca. O extrativismo, em si, nem sempre é negativo, se for utilizado em pequena escala local. Exemplos importantíssimos são a erva-mate (somando-se seus cultivos e extrativismo puro, o quer gera dois bilhões de reais ao País), as fibras que os povos originários utilizam para o seu sustento e venda de artesanatos, a madeira e lenha (para mercados locais e de forma sustentável), as frutas nativas, a polpa de frutas de palmeiras, como o açaí (defendido pelo cientista Carlos Nobre) e outras formas sociobiodiversas de extrativismo e produção, em escala compatível e em modelos diversos e sustentáveis.
As formas e os modelos da grande escala do sistema mundo, impostos aos países do Cone Sul, subjugam nossas economias a uma reprimarização galopante. Demandam-se pesadas infraestruturas, associadas a empreiteiras doadoras de campanhas, o que gera espoliação de matérias primas em nossos países exportadores. E as indústrias de manufaturados, fundamentais à nossa vida, são jogadas para outra parte do mundo, em grande proporção sobre outros povos também espoliados em sua dignidade de trabalho quase escravo. Chegamos ao cúmulo de importar produtos como panos de prato e chapéus de palha da China, a distâncias de mais de 10 mil quilômetros para prover bens que produzíamos aqui. Sem falar em nossas roupas que provêm da China, Índia e Bangladesh.
O Banco Mundial (BIRD), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) estão entre os principais articuladores desta expropriação degradadora e concentradora de capital, mas que conta com parlamentares em portas giratórias entre o público e o privado.
O “Pré-sal” está mais acima da superfície, mas não enxergamos. Cabe aos setores da população potencialmente mais sensíveis à questão da perda de nossa Ecossoberania e aos governos eventualmente mais populares fazerem o contraponto ao Usual Mundo Impossível, para o Outro Mundo Possível e Necessário. Também cabe estarmos com os olhos bem atentos para este aprofundamento de um esquema lesivo a nossas soberanias e economias, buscando nossas vocações locais, nossa autonomia e autoafirmação com base em modos de vida mais sustentáveis, aliados da sociobiodiversidade latinoamericana.
O chamado Mercosul já nasceu com rótulo questionável. Tem seu prefixo “merco”, de mercado. Será esta nossa identidade, ademais imersos em mercados exportadores de matérias-primas? O Mercosul não se livrou de uma visão economicista dominante que ainda segue os modelos insustentáveis. No imaginário, inclusive de alguns setores da esquerda, a economia hegemônica acaba servindo como modelo de identidade e não às formas de vida latinoamericanas e de nossas lutas comuns de contracultura, onde estão em primeiro lugar as bandeiras de liberdade e soberania, as quais lembramos nas diferentes edições do Fórum Social Mundial, da década passada.
Há de se reconhecer que as matérias primas ou manufaturados que são exportados podem representar fatias importantes do PIB (Produto Interno Bruto). Porém, estamos queimando o forro de nossa casa para jogar lenha na lareira para aquecer uma falsa economia, o que o filósofo Aristóteles chamava de crematística, que lida com valores meramente monetários, superficiais. Isso já está acabando com a resiliência (capacidade de regulação) de nossos sistemas vivos (ecossistemas). Vivemos um modelo de esgotamento que compromete cada vez mais, inclusive, o recurso água, fundamental à vida. Lesivo à dignidade humana e à qualidade de vida das gerações atuais, futuras e ao restante da biodiversidade, esta sofrendo o processo chamado de Sexta Extinção em Massa. O Crescimento econômico, nesta lógica dominante, é uma bandeira, do BIRD, do BID e da OCDE, que está a nos levar ao abismo.
O capital, cada vez mais obsessivo pela forma mórbida de crescer, arrasta nossos governos e desgovernos para esse abismo, sem volta. Nossa biodiversidade do Cone Sul – e vamos nos limitar ao Pampa – está sendo muito bem aproveitada lá fora, gerando bilhões de dólares para empresas estrangeiras, pela biopirataria de nossos bens nacionais compartilhados, como no caso de: feijoa (goiabeira-serrana), levada para Nova Zelândia e Colômbia; dos butiás (jelly palm), levados para Inglaterra, Espanha e EUA; do nosso araçá, que foi plantado comercialmente com êxito na Austrália, levado há mais de 100 anos; as plantas ornamentais, como petúnias, verbenas, cactos e outras roubadas por empresas japonesas, norte-americanas e europeias, e comercializadas no mundo inteiro; dos venenos de serpentes, como a jararaca, levados por transnacionais norteamericanas para produção de medicamentos (Captopril); plantas medicinais, como a cancorosa, com substâncias patenteadas por empresas japonesas; forrageiras nativas do Pampa, utilizadas na África do Sul, Nova Zelândia e EUA, entre centenas de espécies roubadas do Cone Sul. Em contrapartida, em nossos territórios nos impõem a condição de servos exportadores de commodities derivadas de monoculturas biocidas e do MEGAEXTRATIVISMO.
O problema é que o sistema mundo, capitalista, espolia, prioritariamente, tanto as nações da periferia como da semiperiferia e de suas sociedades. E, se necessário, cria o caos socioeconômico e político, junto com o sistema financeiro, o que David Harvey chama de “Destruição Criativa”. Acabam-se com processos genuínos, criam-se golpes (agora parlamentares) nas débeis democracias (Paraguai, Honduras, Brasil), deixando os países sem muitas alternativas, gerando violência e medo, longe da soberania, civilidade, cidadania, dignidade, sociobiodiversidade…. A barbárie criada e o niilismo são caldos de cultura para o medo e a violência, que resulta em líderes e candidatos fascistas, ou com caminhos privatistas, de retrocessos na legislação ambiental (licenciamentos ambientais flexibilizados, pacote de Venenos, via Lei 6299/2002, entre outras) e social (contrareformas da previdência e trabalhista). Poderemos ter estes temas em nossa agenda para enfrentarmos os candidatos entreguistas e neofascistas?
Estamos no Brasil e no mundo vivendo a essência pura de um sistema capitalista de competição extrema e barbárie. Surpreendentemente, a palavra competitividade segue na pauta dos políticos de diferentes matizes. O economista marxista Vito Letizia, falecido em 2012, e que cursou Biologia na UFRGS, preso pela ditadura militar em 1970, havia alertado para a finitude deste modelo adotado em parte pelo Brasil. Letizia afirmava: “A Destruição da Amazônia financia o crescimento brasileiro”. Aquilo que nosso imaginário pensava ser possível vivermos em um estado de bem estar social, com certo nacionalismo induzido pelo Estado ou megaobras e megainfraestrutura, sem enfrentarmos essa elite e esse sistema injusto e criminoso, parece ter demonstrado que está bem longe da realidade.
Tampouco é automaticamente garantido êxitos significativos na mudança de rumo caso a esquerda ou centro-esquerda ganhe as eleições de 2018 no Brasil. Se não houver pressão social e mudarmos o paradigma profundo desta economia de concentração, consumo exacerbado e descaso com a finitude dos recursos naturais, deixando livres o sistema financeiro e as elites econômicas que fazem girar o círculo vicioso do sistema atual, não teremos saída.
Para enfrentarmos esta pauta negligenciada, é necessária muita luta para inclusão destes temas nas eleições e possamos apoiar e eleger candidatos(as) que tenham coragem de revogar a EC (Emenda Constitucional) n. 95/ 2016, que congela recursos para a Educação e Saúde. Oxalá, consigam vencer os candidatos progressistas sobre a ala de neofascistas, muitos deles denunciados pelo sitio-e De Olho Nos Ruralistas. E que o neoliberalismo seja barrado, em um movimento de baixo para cima, além das eleições, na busca pela identidade latinoamericana e autoafirmação, na construção de sociedades solidárias, fraternas e ecologicamente sustentáveis, fortalecendo-se a ecossoberania. Há tempo de se buscar programas e candidatos deste campo, urgentemente! Uma pauta ambientalista se encontra no documento Transição Ecológica Necessária.
Paulo Brack, professor do Instituto de Biociências da UFRGS