A complexa “engenharia” legal para viabilizar a operação garante juros de milhões de reais ao Banrisul e coloca todo o risco da operação na conta dos servidores públicos
Não importa mais partido que governa, não importa mais se é município ou estado. Todo o final de ano tem sido um drama para muito que escolheram o caminho do serviço público para sobreviver. Dezembro chega e, com ele, chegam também aquelas contas típicas (como IPTU e IPVA), só que sem mais a garantia de se receber o 13º salário para dar conta de quitá-las. Cada vez mais, a realidade do funcionalismo público nos municípios e no estado tem se deteriorado, e direitos garantidos por lei como salário em dia estão cada vez mais distantes.
Segundo a Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (FAMURS), em 2017 apenas 5% das prefeituras do estado precisaram recorrer a empréstimos para colocar em dia o 13º dos seus servidores, enquanto que 4% assumiram que efetuarão os pagamentos com atraso. Números relativos que são, aparentemente, baixos, mas que, em valores, significam milhões de reais dos cofres públicos empenhados no pagamento de juros ao banco.
Quando o assunto vem à tona na mídia, a saída das antecipações via empréstimo bancário é tratada quase sempre com solução. Em exemplos de prefeituras administradas pelo PT e pelo PSDB, bem como no caso do funcionalismo do estado (governado pelo PMDB), mostraremos quanto pode estar indo de verba pública para pagamento de juros para bancos ao invés de investimento em serviços públicos.
Como funciona
O órgão executivo (município ou estado) anuncia que não terá dinheiro para pagar em dia o 13º dos servidores. Assim, é aprovada no legislativo uma lei que permita o parcelamento desse pagamento com juros e correção. Incluso no projeto de lei aprovado, o governo já tem negociado com o Banrisul uma taxa diferenciada para aqueles que optarem por contratar o empréstimo para receber de uma só vez o seu décimo. Desse modo, o servidor que contratar a operação estará utilizando o valor corrigido pago pelo governo para quitar o empréstimo junto ao banco. Em tese, não desembolsa com nada, apenas assiste à entrada da parcela do décimo na sua conta e o desconto da parcela do empréstimo feito.
São Leopoldo, uma das pioneiras
No município de São Leopoldo, na região metropolitana, a opção de receber o 13º salário integral até o dia 20 de dezembro via empréstimo junto ao Banrisul já acontece desde 2012. Na época, o atual prefeito Ary Vanazzi (PT) encerrava o seu segundo mandato (2004-2012) como prefeito da cidade. De lá para cá, o PSDB de Moacir já governou e hoje quem comanda a prefeitura é novamente Vanazzi. Todavia, o empréstimo para garantir o pagamento em dia do décimo terceiro aconteceu em todos os anos e, pela primeira vez em 2017, aqueles que optaram por não contratar a operação de crédito no banco ficaram sem receber nada no dia 20/12.
Desde 2014, os servidores do município sofrem com o atraso dos salários, e a gestão que governa acaba sempre culpando o governo anterior – Moacir colocava a culpa em Vanazzi, que agora coloca a culpa em Moacir. O atual governo petista inovou ao apresentar um calendário das parcelas da folha que foi efetuado ao longo de cada mês. Com o empréstimo do 13º e com a entrada de receita pelo pagamento de IPTU, os servidores recebem em dia há dois meses.
O município de São Leopoldo conta hoje com 5.279 servidores – destes, 4.557 tiveram de optar entre a incerteza de receber o 13º[1] ou contratar um empréstimo e recebê-lo na hora (o restante trabalha na Secretaria Municipal de Água e Esgoto – SEMAE, e teve seu direito quitado em dia). Destes, 2.660 optaram por contratar o empréstimo, ou seja, cerca de 58% do universo de 4.557 funcionários. Fazendo um exercício de simulação, 58% do valor da folha do munícipio (excluindo-se SEMAE) daria o valor de R$ 15.201.082,28. Esse valor, em uma simulação de empréstimo conforme a apresentada para os funcionários (taxa de juros de 2,85% ao mês + imposto sobre operação financeira – IOF, em 10x), resultaria em R$ 2,9 milhões gastos só em juros ao longo de 2018. Ou seja, quase R$ 3 milhões devem cair diretamente nas contas do Banrisul[2] ao invés de serem investidos para melhoria de escolas ou postos de saúde, por exemplo.
Em Porto Alegre, equivalente a 5% do gasto com educação pode virar juros
Na capital do estado, o prefeito Nelson Marchezan (PSDB) foi o primeiro tanto a parcelar a folha de pagamento como o décimo terceiro salário dos servidores. Alegando falta de recursos para justificar o parcelamento, há boatos de que a prefeitura tem dificultado o acesso do Tribunal de Contas aos números do município, e que a razão disso seria a inexistência de uma razão técnica para esses parcelamentos – ou seja, o critério seria puramente político. Considerando a forma com que o prefeito do PSDB tem lidado com o funcionalismo municipal, bem como o fato de a gestão Fortunatti (PDT) ter entregue a prefeitura com o índice de comprometimento das receitas líquidas com despesas com pessoal na casa dos 49% (bem abaixo dos 54% do teto que determina a Lei de Responsabilidade Fiscal), razões não faltam para alimentar tal tipo de boatos.
Segundo dados do portal da transparência, a folha de pagamento mensal fica em R$ 227.633.335,12. Se fizermos outro exercício de simulação e consideramos que todo o universo de servidores e aposentados contratem o empréstimo ofertado pelo Banrisul, um empréstimo do valor acima informado nas condições oferecidas aos servidores (taxa de 2% + IOF em 10x) resultaria em um total de juros pagos pela prefeitura ao banco de R$ 33.719.838,58. Para fins de comparação, o valor gasto em juros para quitar o décimo terceiro salário dos servidores pode representar cerca de 5% total investido pelo município na área da saúde em 2016 (conforme dados do portal da transparência, o valor total despendido foi de R$ 672,255 milhões).
No estado, total a ser pago com juros pode chegar a quase 20% do lucro líquido do Banrisul
No funcionalismo público do RS, a situação é ainda pior. Com o parcelamento de salários desde o seu primeiro ano de governo, a gestão de José Ivo Sartori (PMDB) foi a que mais a fundo levou o parcelamento de salários, chegando a depositar míseros R$ 300 no dia previsto para o pagamento. Após a última greve dos professores, o governador mudou de estratégia, e desde então tem parcelado a folha, pagando os servidores conforme o valor a ser recebido. Em um cenário tão caótico, a perspectiva é de grande adesão do funcionalismo ao 13º via empréstimo (especialmente por que, por meio de liminar, não há prazo para adesão).
Novamente segundo o portal da transparência, o total de servidores aposentados e na ativa fica em 285.525, e a folha ultrapassa R$ 1,4 bilhão ao mês. Se fosse feito um empréstimo no valor total da folha, conforme as condições propostas pelo Banrisul (1,05% a.m. + IOF em 12x), o montante gasto somente com juros ultrapassaria os R$ 127 milhões. Para se ter uma ideia, o lucro do banco do estado em 2016 foi de R$ 659,7 milhões. O valor a receber em juros caso todos os servidores do estado contratassem o empréstimo corresponderia a 19,2% desse valor.
Banrisul, um agente estratégico
As contratações da antecipação do décimo acabam no dia 15/1 para os servidores do estado e no dia 19/1 para os do município. Não se sabe ainda se os governos irão divulgar dados referentes a essas operações (número de adesões, valor a ser gasto com elas, etc.), mas é inegável o papel do banco do estado como uma espécie de salva-vidas dos governantes de turno gaúchos. Único banco que consegue apresentar taxas de juros abaixo daquelas praticadas no mercado, o Banrisul tem servido como uma válvula de escape aos prefeitos e ao governador com relação à insatisfação do funcionalismo público. Lucrando na quantidade de operações realizadas, o banco aparece como saída graças à sua diretoria encontrar-se na própria capital do estado, o que diminui a distância entre os órgãos executivos e a cúpula da instituição capaz de tomar esse tipo de decisão.
Curiosamente, as folhas dos munícipios de São Leopoldo e Porto Alegre foram compradas pela Caixa Econômica Federal. Mesmo assim, o banco federal não parece demonstrar interesse em apresentar proposta semelhante à que o Banrisul tem feito.
Por se tratar de um banco público gaúcho, pode-se pensar que o valor lucrado pelo Banrisul com as operações de antecipação do décimo reverta novamente em verba nos cofres públicos. Mas não é bem assim. Além de o banco ser uma sociedade de economia mista, ou seja, com acionistas que recebem parte do lucro gerado pelo banco, boa parte do valor divulgado é utilizada em outras rotinas da instituição.
Pode-se considerar, é claro, o risco de o banco tomar o calote das administrações públicas. No entanto, para além dos depoimentos de funcionários do banco que admitem que nunca os governos atrasaram as parcelas do décimo (aqueles que já o fazem há mais tempo), a operação é contratada diretamente no CPF do servidor. Caso o governo atrase o depósito, a parcela é debitada igual, à custa do funcionário. E é aí que entra toda uma engenharia a fim de burlar as leis que hoje visam a proibir esse tipo de prática.
Uma “engenharia” legal: o risco de atraso é por conta do servidor
Mais recentemente, foi possível acompanhar a discussão no âmbito do governo federal a respeito de uma mudança no artigo 167 da Constituição Federal, a chamada “regra de ouro”. Tal artigo determina a proibição da emissão de títulos da dívida pública por parte da União a fim de empenhar o valor arrecadado com despesas correntes – entre elas, o pagamento da folha de salários dos servidores.
A prática de se contratar empréstimos para pagamento de salários também é proibida por lei nas esferas estadual e municipal, por meio da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF –, em seu artigo 35. Por isso, as operações de empréstimo são sempre disponibilizadas no CPF do servidor, ficando ao seu critério contrair a dívida ou não. Publicamente, os governos assumem que arcarão com os custos dessas operações, tanto é que são eles que negociam as taxas de juros junto ao banco. Mas no caso de atraso no pagamento, a parcela é debitada diretamente da conta do trabalhador. A cobrança não atrasa no caso de atraso do pagamento, e a dívida e seus ônus (cheque especial excedido, por exemplo) ficam a cargo de quem contratou o empréstimo – no caso, o servidor.
Ou seja, deixando a critério do trabalhador, os governantes viabilizam com que milhões de reais saiam dos cofres públicos e entrem direto nos cofres do Banrisul (e no bolso dos seus acionistas). Vale lembrar que o cenário dos servidores é de salários atrasados ou parcelados, o que praticamente o empurra para o empréstimo. Parece se tratar de uma livre opção, mas é na verdade uma complexa ratoeira para viabilizar a transferência de recursos públicos para o privado.
No caso do governo do estado, haveria mais um agravante: no art. 36 da LRF, proíbe-se explicitamente a contratação de empréstimo entre um ente da Federação (RS) e uma instituição financeira sob seu controle (Banrisul), no caso desse ente ser o beneficiário. No aspecto legal, quem se beneficia dos empréstimos seriam os próprios servidores públicos. Mas na prática, não se trata de um empréstimo negociado diretamente pelo poder público, com vistas a viabilizar um compromisso que por lei é seu?
Por fim, tanto nas Leis Orgânicas de São Leopoldo (art. 187) como de Porto Alegre (art. 40), bem como na Constituição Estadual (art. 37), o prazo final para o pagamento do décimo terceiro salário do funcionalismo é o dia 20 de dezembro. Por isso a necessidade de se ver aprovada, ano após ano, uma lei que permita burlar essa determinação. Lei essa que costuma ser aprovada sem maiores questionamentos (a exemplo do estado em 2017, em que a Assembleia Legislativa aprovou por unanimidade), provavelmente por se tratar de uma prática comum a todos os partidos.
Parcelamento de salários: mais ladaia, menos direitos
O que se configura, por fim, é que as supostas “soluções” para o atraso ou parcelamento do 13º salário no funcionalismo público servem de novo para repassar dinheiro público para os cofres de um banco. Para além dos mecanismos da dívida, que já sugam boa parte do orçamento (no nível federal, esse valor ultrapassa a metade do orçamento público), surgem a cada dia novas maneiras de alguns poucos se apropriarem de recursos que são de todos. Ouve-se sempre falar em crise, mas para empenhar milhões de reais em juros de empréstimo, nunca falta. Fala-se em leis de responsabilidade, em gestão consciente da administração pública, mas quando se trata de encher os bolsos dos de cima, sempre há um caminho.
O parcelamento do décimo terceiro é só mais um ataque entre tantos outros que os de baixo têm sofrido. Ataque esse que faz mira na destruição do serviço público. Ou seja, é só mais da mesma ladaia, com menos um direito.
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[1] Trabalhadores da educação tiveram parcelamento de 13º em duas vezes (mas não metade do salário, mas dois montantes do total divididos em igual valor por professor). Já os demais receberam apenas R$750,00 até agora e não têm previsão do que vai acontecer.
[2] Lembrando que o exercício acima é meramente ilustrativo, uma vez que 58% dos funcionários não necessariamente representam 58% da folha, já que os salários não são iguais entre todo o quadro.