Para começar esse texto é preciso explicar uma coisa: pelo recorte – a escolha de falar só sobre alguns personagens – é claro que este texto não pretende elencar os melhores personagens, nem os mais importantes, muito menos fazer uma lista dos essenciais. Minha ideia é comentar alguns personagens que julgo interessantes por razões que vou expor adiante. Também preciso dizer que são personagens que me lembro, então é claro que há a possibilidade de eu contar aqui alguns e deixar de fora outros muito melhores. Mas vamos lá.
Antes de começar é legal dizer a razão de escolher o personagem como centro do tema. Além da falta de criatividade, tem uma coisa interessante ao olhar para esse aspecto do filme: os personagens são a representação fílmica de nós, seres humanos. (Óbvio que filmes blockbusters do mercado, de heróis, etc, idealizam os personagens como além-humanos, tipo assim.) Vou apresentar personagens que creio representam aspectos reais de nossa vida. A escolha por buscar e interpretar essa parte do filme é porque o debate sobre o que é o sujeito na modernidade me interessa. Com o avanço do capitalismo e sua lógica de mundo vemos cada vez mais uma quebra da subjetividade. Exemplo claro disso são os reality shows, como o famoso Big Brother Brasil, mas outros, como as Kardashians. O uso excessivo das redes sociais também contribui, fazendo com que pensemos somente através da imagem que construímos no Facebook e Instagram; a vida acontece naquele simulacro, perdendo a humanidade em prol de uma imagem idealizada tal qual muitos personagens nos filmes. Não quero este tipo de personagem. Vou comentar brevemente personagens que encarnam as contradições do ser humano, os dilemas pessoais, as escolhas de vida, com seus problemas e acertos. Isso que caracteriza o humano: a autonomia de pensamento e sentimento, coisa rara na atualidade por causa do cenário que esbocei brevemente acima.
Que personagens então são representativos? Que nos lembram de uma vida real, não a do simulacro de rede social, mas a vida pé no chão. Vi um filme recentemente que nos brinda com um grande personagem, extremamente complexo, que comete atrocidades, mas é violentado pela disparidade de classe; parece ter vergonha da sua condição, mas é apático; vive uma vida ordinária, é machista, mas pela metáfora do filme pode ser alçado à condição de Jesus. Este é Marcos, protagonista de Batalha no céu, de Carlos Reygadas (2005), grande filme mexicano.
Já que falamos em religiosidade, não podemos esquecer do cavaleiro medieval Antonius Block, personagem de Max von Sydow no famoso filme de Ingmar Bergman, O sétimo selo, de 1957. Ele viu a peste negra dizimar um terço da Europa e se questiona sobre a existência de deus. O embate entre a fé e a descrença permeia todo o filme e angustia o personagem, que vive em uma época histórica em que essa individualidade ainda não existia, embora aponte para ela. Essa tensão de crença e descrença é chave para a obra de Ingmar Bergman, que voltou ao tema muitas vezes, por exemplo no filme Luz de inverno, cujo protagonista é um padre que perde a fé. Bergman, que trabalhou no teatro muito tempo – e talvez aí a razão de ele ser bom no assunto –, criou personagens inigualáveis, sempre com uma tensão interna muito forte. Seu melhor filme provavelmente é Persona, quando duas mulheres, uma enfermeira e sua paciente, interagem diariamente por um tempo e começam a “trocar de identidade”, num continuum de tensionamentos, desejos, sentimentos absurdamente humanos.
Paris, Texas, o maravilhoso filme de Wim Wenders também tem um personagem incrível e enigmático. Travis, nas tomadas iniciais do filme, aparece como um andarilho – rolling stones na gíria antiga. Descobrimos depois que ele botou fogo na casa em que morava com a esposa e o filho. Não sabemos por que, não sabemos como foi parar lá no deserto das tomadas iniciais. Eis que retorna à cidade e se transforma, volta a relacionar-se com o filho e vai em busca de sua esposa, quando a encontra naquela cena incrível em que falam pelo telefone e cujo reflexo da luz no vidro sobrepõem os dois rostos que não se veem.
Para não alongar o texto cito só mais um personagem: Julie Vignon, interpretada pela incrível Juliette Binoche em A liberdade é azul, primeiro filme da boa trilogia de Krzysztof Kieslowski, de 1993. Julie perde o marido e o filho e tem que ver um jeito de viver depois disso. Ela descobre coisas não ditas do passado enquanto busca um caminho para sua vida. É um filme comovente, extremamente bem interpretado e dirigido. Aliás, Kieslowski é outro grande criador de personagens – veja-se, por exemplo, o grande filme Não amarás.
O cinema existe só há um século e pouco (só porque comparado a outras artes é o mais jovem), mas já é tempo para uma abundancia quase infinita de grandes personagens. Ficaram de fora vários, vários, como Marcello em La dolce vita, de Fellini, 1960, ou Nozomi em A boneca inflável, de Koreeda, 2009, que interpreta uma boneca inflável que vem à vida. A variedade é enorme e é importante que tenhamos cada vez mais grandes personagens desses tipos no cinema contemporâneo, cuja escassez de é sintoma de nosso tempo.
Rodrigo Mendes