O Abrigo Infanto Juvenil de Joinville foi fechado pela Prefeitura Municipal no dia 14 de outubro, data em que as crianças começaram a ser transferidas. Entre abrigados e abrigadas, dez foram para a Casa Lar da Associação Diocesana de Promoção Social (Adipros), quatro voltaram para suas famílias e uma foi adotada. No dia 15, servidores públicos foram realocados para outros lugares. Conforme o Sindicato dos Servidores Públicos de Joinville e Região (Sinsej), o prefeito Udo Döhler diz que o abrigo é desperdício de dinheiro público.
Muitas crianças e adolescentes passaram pelo Abrigo Infanto Juvenil, em que a maioria não tinha outra opção antes do acolhimento. Um exemplo é Maria Clara, 19, que trabalha como auxiliar de produção em uma empresa de eletrodomésticos, na zona norte de Joinville. A operária ficou nove meses no Abrigo Infanto Juvenil, aos 14 anos.
Maria Clara conta que foi abrigada com cerca de 24 pessoas, entre crianças e adolescentes, em 2014. Ela recebeu tratamento psicológico, sempre fazia as refeições nos horários certos e teve acesso a uma estrutura que, conforme ela, era muito difícil de ter antes de ser abrigada.
A jovem recebeu muito amor e carinho durante a sua passagem pelo abrigo. Maria Clara mantém contato com a assistente social do local, Anna Carolina Tasca. Segundo ela, as duas continuaram amigas depois da sua saída do abrigo. Anna ajudou na busca por trabalho, inclusive, auxiliando-a na conquista do primeiro emprego.
Antes de chegar ao abrigo, Maria Clara morava no bairro Comasa, viu a morte do próprio pai e passou fome com os irmãos. Sua mãe se tornou alcoólatra um ano depois da morte do marido, não suportou a situação da família e se mudou para o bairro Aventureiro. Maria Clara recebeu atendimento do Conselho Tutelar.
Um dos seus irmãos também passou pelo abrigo entre 2014 e 2015 e foi alfabetizado pelas educadoras da instituição. Foi no acolhimento que Maria Clara aprendeu a usar garfo e faca, pedir desculpas, perdoar, cuidar da higiene e trabalhar. Ela conta que, no abrigo, teve incentivo para a leitura.
A jovem melhorou muito nos estudos, inclusive em matemática, aprendeu sobre artesanato e música, além de conhecer o significado dos presentes nas datas comemorativas. Aos 14 anos, participou de uma palestra sobre sexualidade, em que os adolescentes do abrigo foram convidados. Na época, o local contava com oito adolescentes.
Maria Clara conta, com carinho, que recebia “beijo e boa noite” das funcionárias na hora de dormir. “Sempre tive amor das educadoras”, afirma. Para ela, nunca faltou nada durante o acolhimento, sempre teve conforto, comida e amor. Anos depois de sair do abrigo, quando casou com seu marido, ela também teve apoio das funcionárias.
Quando crianças ou adolescentes precisavam ir até a igreja, tinham que pedir autorização. Na época, uma educadora evangélica frequentava o local junto com elas. As diferentes religiões e igrejas eram respeitadas no Abrigo Infanto Juvenil. “Se quisessem orar, oravam”, afirma Maria Clara.
Na Adipros, o acolhimento de crianças e adolescentes tem uma redução para quatro trabalhadores. Além do quadro de funcionários, a qualidade do serviço também está sendo questionada. “Sem contar, também, a qualificação profissional, o número de profissionais e técnicos que acolhia as crianças no Abrigo Infanto Juvenil tinha em torno de 18 educadores e mais três servidores”, afirma Jane Becker, presidente do Sinsej.
O ECA e o Estado laico
A Adipros é uma organização social que provém da igreja católica. “Quando você tem uma organização social com cunho religioso, como que fica essa recepção com as crianças, vai ser de cunho religioso ou laico?”, questiona Jane. Ela diz que as crianças acolhidas têm diversas crenças. “Devem ser respeitadas porque elas já vem de uma situação de violência e vulnerabilidade”, defende.
No artigo 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o direito à liberdade compreende, entre outros tópicos, a crença e culto religioso. O ECA também decreta, no artigo 4, a “destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”. Segundo uma declaração do presidente da República, Jair Bolsonaro, “o ECA tem que ser rasgado e jogado na latrina. É um estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil”. A afirmação foi feita em agosto de 2018, para O Globo, quando Bolsonaro ainda era candidato à presidência.
O Estado laico, que pauta o ECA, não pode privilegiar crenças. O poder de um país tem que ser imparcial em relação às diferentes religiões, não deve apoiar e nem se opor a nenhuma. A partir do conceito de laicidade, deve tratar todas as pessoas igualmente. A separação entre a Igreja e o Estado ganhou força a partir da Revolução Francesa. Na França de 1790, todos os bens da Igreja foram nacionalizados. Portanto, de acordo com as origens históricas, não é contra a religião, mas garante o livre arbítrio.
O prefeito Udo Döhler quer passar a administração dos abrigos para a Adipros. No entanto, essa organização social ligada à igreja católica está respondendo a 18 ações trabalhistas decorrentes de má administração e fechamento do CEI São Paulo Apóstolo.
Jane relata que, no dia 14, foi feita uma reunião com o secretário de Assistência Social, Vagner Oliveira. A ideia principal da reunião era discutir sobre a Casa Viva Rosa, local público que acolhe mulheres, crianças e adolescentes em situação de violência. “Com relação ao abrigo, nós fizemos algumas cobranças. Solicitamos um inquérito civil no Ministério Público para apurar as irregularidades do processo, que levou ao fechamento do Abrigo Infanto Juvenil público”, afirma.
Uma das cobranças era sobre a liberação da Adipros para assumir uma casa de acolhimento de crianças e adolescentes. Segundo Jane, a prefeitura não apresentou nenhuma justificativa. Com o fechamento do abrigo e a transferência das crianças, houve uma redução de 20 vagas. No caso do abrigo de crianças e adolescentes, o local não era o único espaço que os acolhia, diferente da Casa Viva Rosa, que hoje, em Joinville, é a única casa que acolhe mulheres vítimas de violência.
Jane não acompanhou a transferência porque tinha a reunião com a Secretaria de Assistência Social no mesmo período. Houve uma divisão, alguns acolhidos foram para casas diferentes e outros para as famílias que moram em outros estados. “A prefeitura realmente fez as coisas de uma forma muito rápida, justamente para que não houvesse mobilização em defesa do espaço público”, aponta.
Educadores e cozinheiros também passaram pelo processo de transferência. A prefeitura apresentou os locais onde havia vaga de acordo com cada função. “A defesa do abrigo continua através da fiscalização nos lugares onde as crianças foram transferidas”, explica Jane.
Pedagoga relata experiência; Casa Viva Rosa vai continuar aberta
Evelim Sacardo Beraldo trabalhou no Abrigo Infanto Juvenil público durante dois anos. Exerceu a função de pedagoga no local a partir de dezembro de 2017. “As situações de precariedade, como falta de sal, ocorriam sim”, diz. O setor responsável por suprir as necessidades básicas é o abastecimento da Secretaria de Assistência Social. “Em alguns momentos, eles não tinham itens específicos que demandam licitação. Eram nesses momentos que faltavam coisas básicas como sal e macarrão”, conta Evelim.
Evelim conheceu muitas pessoas, assim como Maria Clara, que passaram pelo abrigo e hoje são autônomas, vivendo com dignidade. “Como o conceito de autonomia é muito amplo, e nesse caso fica ainda mais subjetivo, acredito que posso afirmar que conheço ex-acolhidos que estão vivenciando situações mais adequadas do que no momento em que foram retirados da família”, explica.
“A forma que foi realizada a transferência é absurda”, denuncia Evelim. No dia 14 de outubro, por volta das 12h30, a decisão judicial foi recebida e as crianças tiveram que sair já às 13h30. “Os carros da secretaria começaram a chegar e eles foram carregando tudo. A situação foi completamente inadequada, desrespeitando todas as garantias de direitos, especialmente o melhor interesse dos envolvidos”, explica.
A Prefeitura anunciou a decisão de que a Casa Viva Rosa não será terceirizada em 2019, na audiência do dia 14 de outubro. Maria Clara, que passou pelo Abrigo Infanto Juvenil, acredita que a Casa Viva Rosa tem que ficar aberta, pois, como muitas mulheres, ela pode precisar do serviço de acolhimento.
“Às vezes quando a mulher procura a delegacia sofre uma violência pela segunda vez, infelizmente o Estado não prepara os órgãos para acolhimento. Às vezes a mulher não sabe a quem recorrer”, explica Jane Becker.
Lizandra Carpes, assessora de imprensa do Centro dos Direitos Humanos (CDH) Maria da Graça Bráz, avalia que a terceirização pode ameaçar o sigilo do espaço. Quando são servidores públicos e uma equipe técnica qualificada, o controle do sigilo é mais garantido. “Agora, quando passa por uma terceirização por uma Organização Social, a rotatividade de profissionais é outra, então é bem possível que o sigilo fique em risco”, declara.
Para Lizandra, a privatização dos abrigos é um reflexo da falta de políticas públicas do governo federal, que dificilmente discute a saúde da mulher e alternativas contra o feminicídio. “No momento em que deveríamos estar falando de mais serviços de proteção, a gente está lutando para não terceirizar o único abrigo para mulheres vítimas de violência em Joinville”, diz.
Para Jane Becker, houve um avanço em relação a Casa Viva Rosa, o que é uma vitória. “É um avanço que aconteceu justamente por causa de toda essa mobilização do sindicato, dos servidores, do CDH e de todos os movimentos sociais que participaram desse movimento contra a terceirização”, se orgulha. Para Jane, é necessário organizar os movimentos sociais e entidades para 2020.
Jane acredita que o papel do Sinsej, do CDH e de outros movimentos sociais é continuar fiscalizando para ver como essas crianças que foram transferidas do abrigo estão sendo acolhidas. O CDH sempre acolheu as mulheres, mas, para Jane, o primeiro lugar deve ser a Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso.
Cada região da cidade tem um Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), então, no serviço de atendimento às mulheres, a situação vai ser encaminhada para a Casa Lar Viva Rosa. “Três instituições que a mulher pode procurar: Delegacia, CDH e o CRAS”, finaliza.
Reportagem originalmente publicada no jornal Primeira Pauta.