A violenta fé do dogma

É complexo escrever estas linhas; pelo triste do caso, pelas emoções que nos gera e porque opinar sobre a dor de outra pessoa sempre requer muito cuidado e responsabilidade. Sobretudo quando falamos de uma menina, a qual foi estuprada sistematicamente por seu tio durante quatro anos, e que em consequência desse crime ficou grávida, e teve que se ver obrigada a passar pela traumática experiência de um aborto no começo da sua infância. O mais triste é que foi a gravidez constatada da menor que permitiu conhecer anos de abusos.

Para ter uma noção real do que estamos falando e da sua gravidade, é importante sinalizar que a cada hora, quatro meninas brasileiras de até 13 anos são estupradas, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, e a maioria dos crimes é cometido por um familiar. Em 2018, último dado disponível, foram mais de 66.000 estupros no Brasil, 53,8% de meninas com menos de 13 anos.

Além da falta de empatia e crueldade para tratar sobre a vida e a dor de uma criança estuprada, também podemos presenciar como a vulnerabilidade de direitos se torna uma instituição desde a infância no Brasil, que guarda direta relação com um recorte de classe, raça e etnia quando falamos sobre aborto. Segundo dados de 2015 publicados pela CSP (Caderno de Saúde Publica) no ano 2020: “Embora os dados oficiais de saúde não permitam uma estimativa do número de abortos no país, foi possível traçar um perfil de mulheres em maior risco de óbito por aborto: as de cor preta e as indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, e sem companheiro.

Decidi escrever estas breves linhas porque frente ao doloroso caso desta criança, se revelou o pior da nova cruzada conservadora que o governo lidera desde o início de seu mandato, o qual tem como um dos eixos de ação principal a pasta encabeçada pela ministra Damares. Ministra que, ao tomar conhecimento do caso no domingo (09), produto de uma nota num jornal local de ES, decide tomar partido e no dia 13 de agosto anuncia via Facebook o envio de dois assessores do governo ao Espírito Santo, um da Secretaria dos Direitos da Criança e outro da Ouvidoria de Direitos Humanos. Isto já denota o plano de interferir na decisão da menina e sua família, intenção que se materializa na visita à família com o intuito de persuadi-la para continuar com a gravidez, apesar do risco real que podia trazer para a vida da criança.

Uma vez falidos os intentos da ministra e seus assessores, os dados foram vazados pela bolsonarista e ex-assessora da ministra, Sara Winter, nas suas redes sociais, em live feita pelo seu canal de YouTube, no sábado (13) de noite. Sara publicou todos os dados da menina e o hospital onde ela foi transferida para a interrupção da gravidez, localizado em Recife. Com os dados vazados, o hospital virou uma trincheira religiosa de domingo onde evangélicos, católicos e partidários bolsonaristas em geral, que exigiam entre ameaças o nascimento do feto, embora estivesse em risco a vida da criança. Ali se jogava uma das partidas mais importantes da nova agenda dogmática de governo, que não tinha maior escrúpulos para intervir se fosse possível.

É importante ressaltar que apesar do ódio que reinavam nesse dia fora do hospital, um grupo significativo de mulheres foi demostrar seu apoio à menina, como também foi o braço de resistência contra os desejos conservadores de interromper o procedimento médico. O movimento feminista tem sido de vital importância para avançar nas pautas de legalização e descriminalização do aborto, para que este seja seguro e gratuito, como também foi o movimento feminista o artífice da conquista do direito ao aborto nas três causas previstas atualmente na lei.

O final desta história teve para a criança e sua família, que simplesmente queriam ser amparadas pela lei, a aplicação correta do direito que lhes correspondia. E, sobretudo, o começo de um largo caminho de cura, que será talvez interminável, mas que pode encontrar agora acolhida numa parte do povo, que ainda acredita na infância como um direto pleno a ser vivido e principalmente protegido. Parte do povo que, a partir deste momento, estará atenta a ser a contraparte da narrativa dos que querem impor o dogma da vida por sobre o horror e o erro.

Sem dúvidas são múltiplas as formas e os temas a serem discutidos e analisados a partir deste caso de abuso infantil. Também podemos presenciar com medo e raiva como o estado novamente resulta ser agressivo na sua lógica patriarcal fundante, neste caso, mas o foco que tentei desenvolver foi um pouco mais simples, mas não por isso menos importante. É certo que está tudo interconectado, mas o objetivo deste texto foi tentar denunciar a violação absoluta e intencionada da lei por parte do governo, e que todo o acontecido está longe de ser uma cortina de fumaça ou alguma ação isolada de um grupo de lunáticos religiosos como se está escrevendo por aí. Para a construção da verdade e seus horizontes de entendimento, a escolha da narrativa é de vital importância.

Ignacio Munhoz é imigrante Latinoamericano, pesquisador informal das lutas populares, amante dos chocolates e do Colo Colo. Serigrafista emergencial até novo aviso. Samba e rap fazem parte do seu equilíbrio espiritual. Colunas de opinião quinzenais sobre conjuntura Latinoamericana.