Material produzido pelo Coletivo Quebrando Muros publicado originalmente em seu blog oficial.
Apenas três anos após a tragédia de Mariana, outra barragem da Vale rompeu no estado de Minas Gerais, dessa vez em Brumadinho. Até o momento, ao menos 37 pessoas foram encontradas mortas e centenas ainda encontram-se desaparecidas, em sua maioria trabalhadores e trabalhadoras da empresa na Mina Córrego do Feijão. Cerca de 252 funcionários e terceirizados não foram mais vistos desde o rompimento da barragem de Brumadinho. Os resgates estão sendo realizados pelas equipes de socorro dos Bombeiros e do SUS (Sistema Único de Saúde). Além disso, centenas de moradores e moradoras da região foram atingidos, tendo suas casas destruídas. O passado recente nos mostra como a história se desenrola quando um crime é responsabilidade de uma empresa privada e centenas de vidas são afetadas ou perdidas: as pessoas acabam tendo que refazer suas vidas por conta própria, pois nem o Estado, que supostamente deveria garantir direitos, não vence – ou deliberadamente não quer vencer? – a milionária briga judicial contra a Vale, estatal que foi privatizada em 1997 no governo de Fernando Henrique Cardoso.
O CASO DO RIO DOCE
Em 5 de novembro de 2015 houve o rompimento da barragem do Fundão, atingindo um total de 500 mil pessoas: considerando a rede de pessoas diretamente ou indiretamente envolvidas. Foram 19 mortes, comunidades tradicionais que perderam seu contato com o Rio, como o povo Krenak que têm sua identidade intrinsecamente conectada ao Uatu (Rio de Água Doce) e o povoado de Bento Rodrigues, que foi totalmente devastado pela lama. O caso ficou conhecido pelo nome da cidade de Mariana, porém deixou rastros que vão muito além do município [1]. Os rejeitos chegaram ao Rio Doce, se estendendo por mais de 200 municípios, sofrendo com o desabastecimento de água tendo que decretar estado de calamidade pública. Mais de 10 toneladas de peixes morreram em Minas Gerais e Espírito Santo por falta de oxigênio na água. A Samarco sempre alegou que a lama que vazou da barragem não era tóxica [2].
A barragem foi construída para abrigar os rejeitos da extração de minério de ferro da mina Germano, estava localizada em Bento Rodrigues e seu rompimento deixou 225 famílias sem casa, foram 39 milhões de metros cúbicos de rejeito que se espalharam e atingiram pelo menos 680 km com danos que ainda não foram reparados. A mineradora Samarco é uma empresa de sociedade da brasileira Vale e australiana BHP. Foi criada, pelas mineradoras responsáveis, a Fundação Renova, para pagar indenizações e realizar obras de recuperação. A fundação está atrasada com a construção das casas, que estavam previstas para 2019 e agora foram prorrogadas para 2020. A relação entre a Renova e os moradores atingidos ficou ainda pior este ano, quando ela anunciou que irá descontar o valor pago de forma emergencial às vítimas do total da indenização [3]. Ou seja, a causadora do dano gerência e decide, tendo alto poder de negociação com o Estado, COMO deve ser feita a recuperação.
MAS POR QUE A RESPONSABILIDADE É DA VALE?
Enquanto uma empresa privatizada, a Vale S.A. visa, acima de tudo, o lucro. Ou seja, fazem de tudo para gastar o mínimo possível em investimentos para suas obras, buscando maximizar o que ganham para enriquecer cada vez mais. E, neste caso específico, um dos grandes gastos de mineradoras ao redor do mundo é para estar de acordo com leis de proteção ambiental, o que muitas vezes, inclusive, limita sua capacidade exploratória. Ou seja, além das mineradoras precisarem investir na prevenção, segurança, contenção, entre outros, elas ainda encaram como não lucrativa essa limitação na exploração que podem exercer. Por isso, mineradoras estão entre as mais interessadas no afrouxamento das leis ambientais, junto da bancada ruralista – fortemente controlada por latifundiários, por exemplo – que pressionam contra qualquer medida de proteção ambiental, demarcação de terras indígenas e quilombolas e de conservação da natureza.
O ESTADO TAMBÉM É RESPONSÁVEL PELA TRAGÉDIA
Em 2015, após o rompimento da barragem da Vale em Mariana (MG), a então presidenta Dilma Rousseff sancionou o decreto no 8.572 que considera “também como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais” [4].
À época, tal decreto foi justificado como necessário para facilitar o saque do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), que seria uma reserva financeira para o/a trabalhador/a e tem várias restrições para ser sacado, como em casos de demissão sem justa causa e de aposentadoria do trabalhador ou trabalhadora. Mais especificamente, um dos casos em que o FGTS pode ser sacado é o de “necessidade pessoal, urgente e grave, decorrente de desastre natural previsto no Decreto n. 5.113/2004, que tenha atingido a área de residência do trabalhador, quando a situação de emergência ou o estado de calamidade pública for assim reconhecido, por meio de portaria do Governo Federal” [5].
Ou seja, ao sancionar esse decreto, a então presidenta reconheceu, mesmo que indiretamente, que a responsabilidade por refazer suas vidas seria das vítimas, facilitando assim o saque deste fundo, ao passo que a empresa criminosa que ceifou várias vidas e destruiu muitas outras não seria responsabilizada ou não cumpriria com o acordo judicial com o pagamento das multas estipuladas, como foi o que aconteceu. É importante sempre analisarmos com muita cautela decisões do governo que parecem priorizar o bem estar do povo, mas que no fundo estão diretamente ligadas com a manutenção do poder privado e expansão de seus lucros.
Além disso, o último Relatório de Segurança de Barragens da Agência Nacional de Águas, feito entre 2014 e 2015, revela que o Estado brasileiro deixou de fiscalizar 95% das barragens existentes no país, contando com apenas 43 entidades fiscalizadoras que devem dar conta das nossas cinco regiões. Portanto, fica evidente que o Estado não prioriza a preservação ambiental, tampouco busca impedir que devastações como essas ocorram.
Com a recente divulgação das mudanças nos ministérios do governo Bolsonaro, fica ainda mais evidente que as raposas são as responsáveis pela segurança do galinheiro. Isso se explicita, por exemplo, com a transferência da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) do Ministério da Justiça para o recém criado Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. A mudança que mais reflete a verdadeira posse do poder sobre qualquer questão ambiental foi a transferência da “identificação, delimitação, demarcação e registros das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas” para o Ministério da Agricultura. Ou seja, quem tem mais interesse na redução da demarcação de terras para “abrir espaço” para a exploração agropecuária é quem elabora as normas e direciona os recursos públicos. A tentativa de fusão dos ministérios do Meio Ambiente e Agricultura pelo governo Bolsonaro, apesar de não se concretizar, também evidencia de que lado o Estado está e para quem ele governa: as grandes e bilionárias empresas mineradoras e agropecuárias.
GENOCÍDIO E ETNOCÍDIO
Com o desastre de Mariana, o Rio Doce (Watu) foi perdido, prejudicando todo o ecossistema local, a fauna e flora na área da bacia hidrográfica, possivelmente extinguindo espécies endêmicas, afetando o abastecimento de água de muitas cidades, acabando com atividades como a pesca, necessárias para a manutenção da vida das famílias da região, e provocando um genocídio contra a população. A tragédia de Mariana não foi um acidente, assim como o que ocorreu em Brumadinho. O Watu (Rio Doce) é fonte de vida e energia sagrada para os Borum (Krenak), e o Rio Paraopeba faz parte da vida do povo originário da aldeia pataxó hã-hã-hãe Naô Xohã. Com a poluição gerada pela lama de rejeitos em 2015, os Krenak se vêem hoje, três anos após o ocorrido, dependentes de recursos estatais e da alimentação comprada em supermercados. Não podem plantar, os animais desapareceram da região e o rio segue inutilizável [6]. O cacique Háyó, da aldeia Pataxó Hã-hã-hãe, afirma que além da pesca e da água para o dia a dia, o rio mantinha as roças dos Pataxó Hã-hã-hãe: mandioca, milho, bananeiras, fruteiras, hortaliças e pequenas criações. O cacique assegura que os indígenas permanecerão no local. O Estado e as empresas privadas, durante a história, destroem a natureza e a vida dos povos originários, num processo de etnocídio. É com sangue e perdas irreparáveis que os povos pagam pelo lucro da Vale.
CONTRA O CAPITAL – EM DEFESA DA VIDA HUMANA E DO PLANETA
Tendo tudo isso em vista, faz-se mais do que necessária a mobilização popular para o impedimento do avanço das privatizações e entrega da gestão de serviços importantes e de potencial risco ambiental e social nas mãos de empresas privadas. Para além de garantir, hoje, que vidas, rios, cidades e ecossistemas não sejam mais devastados, se faz evidente que uma sociedade verdadeiramente agroecológica não consegue se instaurar enquanto existir o sistema de produção capitalista, que valoriza a busca pelo lucro a qualquer custo e não prioriza a vida, tampouco a saúde das pessoas, fauna, flora e meio ambiente. Assim, criamos as condições necessárias para que seja possível a construção de um mundo novo, onde não haja mais exploração da vida humana e da natureza.
REFERÊNCIAS
- https://www.b9.com.br/95832/mamilos-159-rio-doce-da-lama-ao-caos/
- https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/25/politica/1548443780_104893.html
- https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/25/politica/1548443780_104893.html
- http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1000&pagina=1&data=13/11/2015
- http://www.fgts.gov.br/Pages/sou-trabalhador/como-sacar.aspx
- https://cimi.org.br/2019/01/lama-de-rejeitos-da-vale-chega-a-aldeia-pataxo-ha-ha-hae-pelo-rio-paraopeba-indigenas-decidem-permanecer-na-area/