Nova lei antiterrorismo: um perigoso instrumento contra movimentos sociais

Artigo de opinião por Melka Barros *

        Para elaborar o último artigo de opinião desta coluna, pensei em um assunto que traduzisse ao mesmo tempo um balanço político de 2021 e um cenário para 2022. Em uma conjuntura de ameaças de fechamento de regime em maior ou menor grau que foram postas sobre a mesa com frequência pelo presidente, seus filhos e a retaguarda militar, assim como a corrida eleitoral que se fará daqui a alguns meses, é importante analisar o projeto que cria uma nova lei antiterrorismo no Brasil.

         O PL 1.595/2019 foi aprovado no dia 16 de novembro de 2021 por uma comissão especial da Câmara que foi criada com o objetivo de discutir o assunto. Agora, a nova lei antiterror segue para votação no plenário. Se for aprovada pelos deputados, vai para o Senado Federal.

Quem é terrorista para o Estado brasileiro?

        Terrorismo é um termo originalmente cunhado para conceituar ameaças externas que ponham em risco a segurança de um país. No Brasil, por outro lado, a tipificação penal do crime de antiterrorismo esteve historicamente associada a um mecanismo utilizado para garantir a “ordem” interna, entendida como o controle social da população pelo Estado. Dessa forma, desde o início a política antiterrorismo do estado brasileiro teve como objetivo reprimir movimentos sociais e organizações políticas que atuavam na defesa de direitos e por vida digna.

          A primeira norma no país criminalizando “atos terroristas” foi um decreto em 1921, cujo título era: “Regula a repressão do Anarquismo”, com o claro objetivo de perseguir e encarcerar anarquistas que se organizavam com greves e piquetes por direitos trabalhistas no início da industrialização do Brasil.

          Com a mesma intenção, Getúlio Vargas sancionou em 1935 uma lei que estabelecia sanções penais para os autores de crimes contra a ordem estabelecida, em um momento de bastante agitação política na conjuntura nacional. Já em 1953, com o fim da era Vargas, foi promulgado mais um diploma legal com o propósito de reprimir os crimes contra o Estado e a ordem política e social.

         Durante a ditadura civil-militar foram outorgados vários decretos criminalizando organizações políticas e movimento sociais sobre a justificativa de “combate ao terrorismo” Esses decretos vigoraram um após outro em curto espaço de tempo, até que o último, em 1969 foi revogado pela lei n° 6.620/78, a qual mantém o mesmo objetivo de resguardar a segurança nacional e a ordem pública.  Esta lei perdurou, com algumas alterações, até 1983, quando então entrou em vigor a Lei de Segurança Nacional, revogada este ano pela lei 14.197/21.

Uma política antiterror dentro da democracia

         Mesmo promulgada em um cenário de democracia, a Constituição de 1988 recepcionou a Lei de Segurança Nacional elaborada durante o período da ditadura civil-militar, fazendo perdurar o mecanismo de repressão aos movimentos sociais fundamentado em leis antidemocráticas.  Por trinta e três anos conviveram no ordenamento jurídico brasileiro a Lei de Segurança Nacional, que tem como fundamento a restrição de direitos básicos pelo Estado Penal, e a Constituição Federal, que assegura direitos e garantias fundamentais de reunião, manifestação e atuação político-partidária.

         A Constituição Federal de 1988 também foi a responsável por caracterizar o terrorismo como crime hediondo, imprimindo a esse tipo penal restrições de liberdade mais duras, definidas posteriormente pela Lei de Crimes Hediondos, em 1990. No entanto, perpetuou a tradição no direito brasileiro de não definir conceitualmente o que é terrorismo,  tratando-o de forma vaga e genérica,  o que permitia que a interpretação da polícia e do judiciário definisse quem é terrorista.

      Em 2013, diante de grandes manifestações nas ruas que se iniciaram com a pauta de mobilidade urbana e direito à cidade para todos, o Senado propôs um projeto de lei antiterrorismo que buscava endurecer as persecução penal para esse crime. O projeto de lei de 2013 não passou, mas a discussão sobre a política antiterror continuou. Com o Brasil eleito como cidade-sede da Copa do Mundo e das Olimpíadas, empresas internacionais que organizam estes grandes eventos esportivos pressionaram o Estado brasileiro para apresentar em tempo hábil um instrumento repressor eficaz para conter novas ondas de manifestações que pudessem ocorrer.

          Em 2016 foi aprovado o projeto de lei que definiu o crime de terrorismo como a prática, seja de um ou mais indivíduos, de atos que ela preceitua em rol taxativo por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito racial, cor, etnia ou religião, cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública. Fato inovador nesta lei foi a supressão da motivação política, sempre presente nas legislações anteriores. A presidenta da república, cumprindo acordos de ordem política e econômica com as empresas organizadoras dos eventos, aprovou o projeto que sofreu veto parcial em alguns incisos, mas obteve a sanção presidencial e atualmente configura em nosso ordenamento jurídico como Lei n° 13.260/2016.

O que diz o projeto da nova lei antiterrorismo?

            Um novo projeto de lei (PL 1.595/2019), entretanto, busca alterar as definições e os meios de processamento do crime de terrorismo no Brasil. O projeto foi apresentado originalmente por Bolsonaro, quando era deputado em 2016, sendo arquivado em 2019 com sua eleição para presidente, mas no mesmo ano foi recuperada por um deputado bolsonarista.

       A proposta define como medidas antiterroristas além da vertente jurídico-penal, que é o espectro para apuração desses crimes no regime republicano, uma outra vertente que chama de “combatente-assecuratória”, cujo processo decisório fica sob a coordenação dos “Poderes da República”. Além disso, abre novamente a política antiterror para um campo genérico permitindo reprimir atos que embora não considerados terrorismo: a) seja perigoso para a vida humana ou potencialmente destrutivo em relação a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave; e b) aparente ter a intenção de intimidar ou coagir a população civil ou de afetar a definição de políticas públicas por meio de intimidação, coerção, destruição em massa, assassinatos, sequestros ou qualquer outra forma de violência.

    Está previsto no projeto de lei tanto ações repressivas quanto preventivas. Nas ações repressivas estão descritas medidas como operações das Forças Armadas ou equipes policiais. Já entre os atos preventivos, de acordo com a lei, são permitidas ações sigilosas ou ostensivas, caracterizadas pelo uso diferenciado da força, empreendidas para desarticular a atuação de grupos terroristas antes da ocorrência do ato terrorista

        O projeto autoriza ainda o excludente de ilicitude para agentes públicos que estejam atuando em ações antiterroristas. Isso significa que forças policiais ou militares têm menos responsabilidades por atos cometidos contra civis durante combates.

      Caso seja aprovada, a nova lei antiterrorismo cria um sistema de combate ao terrorismo dentro da estrutura do governo federal, subordinado à Presidência da República. Fica estabelecida a Política Nacional Contraterrorista (PNC), e a partir dela são firmados o Sistema Nacional Contraterrorista (SNC) e a Autoridade Nacional Contraterrorista (ANC), ambos fixados pelo Presidente da República.

       A nova lei antiterrorismo é um perigoso instrumento de intimidação e perseguição a indivíduos e organizações políticas que se oponham ao governo dentro ou fora do campo eleitoral. Com sua aprovação, Bolsonaro cria uma polícia secreta atuando por um sistema paralelo de inteligência para monitoramento e repressão à margem inclusive da Polícia Federal e da Agência Brasileira de Inteligência. É o que a direita espera alimentar para a próxima etapa de conjuntura.

* Melka Barros é formada em direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), escritora e militante de Direitos Humanos e da luta pelos territórios de povos tradicionais no Ceará.