Quando me deparei com A melhor juventude (La meglio gioventú), um filme de seis horas dividido em duas partes para exibição no cinema, imaginei que viria boa coisa. O longa italiano dirigido por Marco Tullio Giordana é de 2003, mas só agora, 2020, chegou aos cinemas brasileiros – antes tarde do que nunca. Qual não foi minha surpresa ao saber dessa data, o que em verdade faz sentido, pois o filme cobre um decurso de tempo que se encerra em 2002, a contemporaneidade de seu tempo. Só por curiosidade, A melhor juventude venceu o prêmio Um certo olhar do Festival de Cannes, ano que concorreu à Palma de Ouro com Carandiru, de Hector Babenco, Dogville, obra-prima de Lars Von Trier, e Elephant, grande vencedor do festival, dirigido por Gus Van Sant, entre outros títulos.
Para falar do filme a primeira coisa que me vem à cabeça é uma frase do Jorge Furtado, algo assim: o cinema não é uma vida, é um retrato. O retrato de uma vida, claro, de uma experiência vivida e palpável, algo que tem se deteriorado com o passar do tempo e o avanço do capitalismo. Mas por que essa frase? Ao sair do cinema, parecia que eu tinha visto uma vida passar, dezenas de personagens com seus problemas e virtudes, encontros e desencontros da vida cotidiana, escolhas e coincidências em quase meio século transcorrido, isso tudo à luz da história recente italiana.
A base do filme são os dois irmãos, Nicola e Matteo, estudantes universitários – o primeiro de medicina, o segundo de letras – que planejam uma viagem junto a dois amigos para a Noruega quando do final dos exames. No ínterim de terminar os exames e viajar, Matteo trabalha temporariamente em um sanatório, cuja ocupação é passear com algum/a paciente do hospital psiquiátrico. Aí que entra uma personagem central do filme, embora não seja protagonista: Giorgia, que estampa o pôster do longa. Giorgia é uma paciente que quase não fala e que grita se a tocam. Matteo conversa um pouco com ela, tira algumas fotos, e por coincidência nota marcas em seu rosto, que depois de discutir com Nicola chega à conclusão de que ela sofria maus tratos no sanatório com choques elétricos para que se acalmasse. Um movimento inesperado do personagem o leva a tirá-la do hospital em uma madrugada, atrasando a viagem marcada, pois Matteo a levaria para casa de seus pais – ele havia pegado a ficha de registro de Giorgia. Algo que soa um tanto inverossímil de primeira, mas que demonstra a espontaneidade e senso de justiça de Matteo, junto, contudo, a uma aversão às regras e convenções sociais (esta ambivalência já torna o personagem interessantíssimo). Ao longo da narrativa vemos que Matteo é uma pessoa de trato difícil, imprevisível e anti-social, e é notável que uma das pessoas com quem melhor se relacione seja Giorgia, uma mulher com distúrbios psíquicos e que, por isso, também podemos chamá-la, com aspas, de “anti-social”. Pois bem, Nicola vai junto do irmão em uma viagem curta para levá-la até os pais – descobre-se, então, que o pai vive com outra mulher e filhos deste outro casamento e que havia posto Giorgia no hospital para livrar-se dela. Em uma cena um tanto aleatória, Nicola, que é médico e se tornará depois psiquiatra, a incentiva a ir comprar um sorvete para os três. Ela, que foi acostumada a se ver como uma incapaz, resiste, mas vai, e numa reviravolta permeada por coincidências é levada por dois policiais. Nicola e Matteo vêem a cena apáticos, talvez por ela estar sem documentos, com medo de serem acusados de algo, e eis que se separam abruptamente. Esse desfecho atinge com muita força Matteo, que desiste da viagem em mais uma cena de espontaneidade e certo problema de empatia com outrem, pois abandona seu irmão Nicola, que está dormindo na estação de trem, e só trocam algumas palavras porque Nicola acorda de repente e vê seu irmão já dentro do vagão. Não comentei, mas Nicola também tem uma boa relação com Giorgia, às vezes até melhor que Matteo, por ser médico a conseguir agir friamente em situações de tensão, diferente do irmão, que parte para briga sem raciocinar. Essas distinções não buscam dar um juízo de valor aos personagens, mas entendê-los como pessoas com temperamentos distintos, cada qual em sua complexidade, e reforçar que estas diferenças significam nossa própria humanidade, já que mesmo pessoas muito próximas podem ser diametralmente opostas (como os irmãos Matteo e Nicola), em manias e concepções de mundo e assim por diante.
Aqui chegamos ao desfecho do primeiro ato, digamos assim, da película, em que há a ruptura essencial entre os irmãos, que a partir de então seguirão por caminhos totalmente opostos, estando em posições antagônicas em alguns momentos, embora sigam se amando pela intimidade que têm pelo tempo de convivência, como pontuarei brevemente a seguir. Antes da viagem, Matteo chuta o balde no exame final, contrariando o professor, e ao deixar Nicola na estação muda totalmente de vida: se alista no exército. Até aqui já percebemos o quão complexo é esse personagem, que parece buscar um sentido para sua vida, pensando encontrar no exército – e posteriormente na polícia – regras para sua vida. O filme, temporalmente, começa em 1966, e no episódio real da enchente na cidade de Florença, que mobilizou muitos civis na limpeza da cidade, acompanhamos o reencontro dos irmãos, Matteo já como militar, o que causa espanto e incomodo em Nicola – a narrativa avança dois anos contemplando o maio de 68 na Itália, quando Nicola se envolve nas lutas estudantis – Matteo, simultaneamente, ajuda a reprimir as manifestações.
Passado esse momento já conhecemos boa parte dos personagens e seus destinos no filme: Nicola se relaciona com Giulia, militante que depois entra para as Brigadas Vermelhas (e mais tarde abandona a família, pois a conciliação entre militância e família não acontece); o pai dos Carati (Nicola, Matteo e mais duas irmãs) é diagnosticado com câncer e morrerá ainda na primeira parte do filme; temos notícia da irmã mais velha, Giovanna, que é juíza; Carlo, amigo de Nicola, que se casará com a irmã mais nova, Sara, vai estudar economia fora da Itália e depois virará funcionário do Banco da Itália; Matteo vive em outra cidade e conhece Mirella, uma fotógrafa que ele reencontrará em Roma e terá um filme que jamais soube. Estou tentando mostrar – e espero que de maneira não tão maçante ou esquemática – que o filme tenta enquadrar um retrato, um pedaço da vida de pessoas comuns na Itália da segunda metade do século 20 e o início do segundo milênio, com seus problemas e acertos, veleidades, conversas íntimas, angustias, tristezas e felicidades, e que a multiplicidade de rostos, jeitos, gestos compõem o cenário heterogêneo fotografada por Giordana.
Pois bem, encaminhando para o final, a segunda parte do filme vale a pena por ligar alguns pontos da narrativa, por trazer novamente à cena Giorgia e por apresentar alguns desfechos de maneira comovente. Comecemos por Mirella, que vai a Roma, conforme dito, por indicação de Matteo, que a recomenda – ela é bibliotecária – uma biblioteca na cidade. Eles se envolvem brevemente, Matteo, que havia mentido quando a conheceu dizendo se chamar Nicola (ele via seu irmão como superior? Queria ter a vida do irmão? O que deu “errado” na sua vida?) segue a mentira, agora inventando outra profissão (engenheiro, não policial, como era). Por que mente? Por que mentiu quando a conheceu, se era possível que nunca mais voltasse a vê-la? Enfim, eles se relacionam por uma noite, transam no carro, e ela engravida, mas isso não é contado, apenas sugerido em uma cena. Esta cena em questão é ano novo e Matteo está na delegacia; ela vai procurá-lo parar contar da gravidez, mas eles brigam e ela vai embora. Mais tarde ele visita a família (Nicola e sua filha, a mãe, as duas irmãs, a mais nova Francesca já casada e com filhos com Carlo) em uma cena melancólica, fria, muito bem interpretada pelos atores e atrizes em questão, mostrando a inquietude da mãe com Matteo, os olhares preocupados da irmã mais velha em relação à mãe. (Esta mesma irmã, Giovanna, foi procurar Matteo quando ele voltou a Roma e estava já há um tempo vivendo e trabalhando na cidade sem avisar a família que estava ali – ele se culpava também pela vida que levou longe do pai, que morreu sem que ele pudesse vê-lo novamente, o que talvez justifique a sua atitude.) Esta cena termina com uma ligação silenciosa de Matteo para Mirella, que não atende, aquela coisa meio clichê até de tocar na secretaria eletrônica, e quando ela ia atender, ele desliga… Ele vai para casa, se aprochega da sacada, tira as botas, vai buscar um copo d’água; a câmera começa um plano-sequencia que o acompanha da pequena cozinha à sacada com um copo de água, que depois de tomar apóia sobre a mesa; depois de fechar a porta com vidros que dá para a sacada – a câmera mantém o plano enquadrando a porta – abre-a, o personagem sai do enquadramento – os fogos se mantém no céu, e vemos Matteo correr para a sacada e se atirar. Uma cena gravada com leve câmera lenta. A câmera continua parada filmando a sacada agora vazia, com alguns fogos no céu e a imagem vai esmaecendo. Uma cena que tem de linda o que tem de cruel, de violenta.
Matteo seguirá presente de certa forma pelos caminhos inesperados da vida, das experiências subjetivas que ainda vão se inter-relacionar. Mirella, cuja vida é desconhecida por toda família de Matteo, já era fotógrafa na época, e passados anos Nicola se depara com uma exposição de fotos em que reconhece o olhar do irmão. Esse olhar remete a um dia comum na vida de Matteo (quando conheceu Mirella), mas este dia gerou um outro encontro que gerou um filho, e tudo isto, pela foto, leva Nicola a buscar pela autora (foto cujo olhar é o centro, e é o mesmo olhar de Matteo que sua mãe reconhece no neto ao conhecê-lo e reconhecer os olhos claros do filho, em mais uma cena emocionante do longa). O encontro é comovente, sendo a primeira vez que ambos comentam do fato (pulando algumas horas de filme, eles acabarão ficando juntos – meio clichê de novo, mas a construção narrativa do filme e imbricações de relações tornam o filme anti-clichê, ou se é clichê é porque nossa vida às vezes é assim também).
A outra ponta do filme e um fio condutor importante é Giorgia, como falei antes. Nicola a encontra inesperadamente depois de anos em outra clínica que maltrata seus pacientes – ele se torna militante da causa, por isso junto ao Ministério da Saúde inspeciona hospitais psiquiátricos. Ele trata dela na clínica onde trabalha e outra cena linda é quando ela reencontra Matteo – claro que isso é cronologicamente antes das cenas que descrevi anteriormente. Depois da morte de Matteo e da descoberta da exposição, Nicola dá o livro com as fotografias para Giorgia, que decide buscar por Mirella. As motivações e emoções de Giorgia são extremamente interessantes e interpretadas muito bem por Jasmine Trinca, que transmite a tristeza e a firmeza da personagem, cuja vida foi quase destruída pela concepção dos hospitais psiquiátricos.
Poderíamos ficar falando horas desse filme, cuja força parece quase inesgotável. O filme parece orbitar um princípio de estruturação narrativa que são as vicissitudes da vida, formalizado esteticamente por: a) pluralidade de personagens e características; b) relações inter-pessoais complexas e heterogêneas; c) justaposição de enredo com personagens e contexto histórico fidedigno ao da Itália da segunda metade do século 20 até a virada para o século 21. Um grande filme, sem dúvidas.
Rodrigo Mendes