A dor e o tempo

Fazia tempo que uma cena inicial não me arrebatava tanto como a de Pieces of a woman, dirigido por Kornél Mundruczó, 2020, disponível na Netflix. O longa ‘pedaços de uma mulher’ na tradução literal nos apresenta, logo em seu início, um plano-sequência memorável do parto humanizado e caseiro da protagonista Martha. Foi absolutamente certeira a mão do diretor, porque num plano como este é possível atrelar a ação do filme ao tempo real da vida, sem cortes. Sendo assim, estamos em contato direto com o sofrimento da personagem, como se estivéssemos ali, presenciando a cena.

O enredo se desenvolve a partir  do parto e dos problemas decorrentes dele. A atriz Vanessa Kirby, que foi indicada ao Oscar por sua ótima interpretação, leva o filme nas costas, mostrando na sutileza a tristeza de sua vida.

O filme é pesado, mas o diretor não cai em pieguices. A trama familiar subjacente envolvendo mãe, irmã, marido e outros demonstra o egoísmo do ser humano no mundo contemporâneo e a falta de empatia com alguém que está sofrendo. (Interessante pensar que algo parecido se encontra lá nos anos 50, no Japão, no clássico Era uma vez em Tóquio, de Yasujiro Ozu.)

Com produção executiva de Martin Scorsese, este belo drama sobre o sofrimento materno – e por que não, sobre a condição social de ser mãe, do papel de gênero imposto às mulheres – se coloca como um grande filme contemporâneo. É bem verdade que na última cena o diretor fraqueja, mas não é algo que desmereça esse ótimo filme.

Rodrigo Mendes