Há obras de arte que ganham em ser vistas em contextos históricos específicos. Isso porque, dependendo da conjuntura, adquirimos uma nova visão sobre as coisas e sobre o mundo, o que pode permitir leituras mais aguçadas das artes – também da política e de outras coisas, mas me refiro à matéria artística por ser o objeto desta coluna.
Certamente Brasil Ano 2000 é um desses filmes. Dirigido por Walter Lima Jr. em 1969, o longa distópico recheado de ironia cai como uma luva nesse Brasil militarizado e autoritário de 2021 sob o governo de Jair Bolsonaro. Ver de trás para diante, como diz Luis Augusto Fischer, a partir do nosso presente, elucida aspectos da violência militar lá e cá, porque também Brasil Ano 2000 tematiza a questão militar, embora de modo muito mais intenso, vide sua época.
A época do filme, assim como de outras artes, é uma questão central para seu entendimento, a meu ver. Não concebo uma obra de arte fora de seu contexto histórico, porque acredito que aspectos sociais se impregnam à obra, que dá trato estético a eles. Portanto, é relevante saber que o filme se localiza em 1969, período da ditadura militar iniciada em 1964, que violaria os direitos civis com torturas e mortes, censura prévia a jornais e a obras de arte. Mais relevante ainda se lembrarmos que o AI-5, o pior ato institucional da ditadura, que intensificou a violência do regime, foi instaurado em dezembro de 1968. Logo, Brasil ano 2000 se posiciona no primeiro momento dos chamados Anos de Chumbo.
O filme se passa no futuro e imaginário ano 2000 (se o filme é de 69, o presente do longa se passa a 31 anos de quando foi filmado). Esse futuro é pós a 3ª Guerra Mundial, uma guerra nuclear. Uma família composta pela mãe, já idosa, a filha e o filho jovens adultos, está na beira de uma estrada quando um caminhão passa e lhes dá carona. Vão para o norte, é isto que sabemos – o país está devastado. Chegando lá a primeira ironia, o nome da cidade é Me esqueci, certamente uma piada envolvendo a ditadura militar, como uma alegação de inocência, um tapar o sol com a peneira e por aí vai. Lá eles serão recrutados por um indigenista para que finjam ser índios para uma visita do general, que estará na cidade para o lançamento de um foguete.
Dá para perceber que o filme é meio disparatado, mas é preciso olhá-lo com um pé atrás, porque tudo está sob a égide da ironia. Isto, aliás, é uma marca da época, seja no cinema pela estética do Cinema Novo, parte nacional dos cinemas de vanguarda dos anos 60, chamados em francês de Nouvelle Vague; seja na canção popular através do Tropicalismo. E nestes dois exemplos é possível perceber outro elemento conjuntural dos anos 60, o debate sobre subdesenvolvimento, matéria sobre a qual ambas artes trabalham e Brasil ano 2000 também – aqui, além disso, há a discussão sobre civilização e não civilização, um debate acerca da condição social dos povos indígenas, algo até hoje atual e necessário, vide votações como o marco temporal, que é um absurdo.
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Interessante estabelecer duas comparações, apenas a título de curiosidade, e que talvez rendam debates e futuros textos: Chris Marker, diretor francês, em 1962 fez o curta-metragem A pista, um grande filme que, assim como nosso exemplo local, se desenrola a partir de uma distópica 3ª Guerra Mundial. O outro caso é a obra-prima 2001: uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick (1968) – aqui a comparação é que, assim como Brasil ano 2000, o futuro milênio é projetado, mas a diferença entre um e outro é eloquente e representativa das experiências históricas em que estão inseridos (EUA, um país na ponta do capitalismo e do desenvolvimento tecnológico, o Brasil, periferia do sistema capitalista). Todos estes filmes dos anos 60…
Rodrigo Mendes