A banalização das palavras

Lembro de uma vez, ali na Rua dos Andradas, num cursinho popular, uma professora de redação dá a seus alunos e alunas um tema para a escrita: a banalização das palavras, ou algo parecido. Não recordo se foi nessa vez que eu e minha futura companheira, a Eve, conversávamos sobre nossos textos, mas teve essa proposta de redação. A partir disso, escrevemos e pensamos sobre a banalização de certas coisas na atualidade, da banalidade do mal, da Arendt, até outras menores; falamos principalmente da banalização das palavras, principalmente aquelas que denotam afeto, sentimento, como “amor”, “amigo”, “amizade”, e por aí vai.

            Nessa semana, me deparei com uma música da Shakira em que vemos um diálogo constante entre dois amantes, dois pretendentes, não sei ao certo. Um possível casal hétero falava e se trocava palavras de conotação sexual, “se seduzindo”, digamos. Bem, em determinado momento, ele fala: “sou masoquista”. Entendemos o sentido, mas parece um adjetivo meio deslocado, esquisito para a situação, dada a gravidade real de pessoas com esse, imagino que podemos chamar assim, transtorno psicológico. Ali era um chalalá de romance brega, mas que acontece toda vez que as pessoas banalizam as palavras – e aqui entra também aquela boa música do Cazuza, “Exagerado”.

            Mas que diabos isso tem a ver com cinema? Seria uma pergunta boa, já que falamos de redação e canção, mas não sobre a sétima arte. O que passa é que esse “masoquista” na música da Shakira e toda essa banalização me fizeram recordar do filme que aqui falei na quinzena passada: o belo e cruel filme La pianiste, do diretor alemão Michael Haneke. Ali sim vemos uma personagem incrivelmente humana, complexa, porque com problemas e transtornos que só a convivência social e a subjetividade humanas podem conceber – então estamos longe dos personagens rasos de filmes que assistimos por aí, estamos na arena dos grandes dramas do cinema, com personagens complexíssimos e de grande valor para a arte da interpretação de papéis, como é o caso do teatro e do cinema.

            Isabelle Huppert interpreta magistralmente uma mulher doente: pianista de sucesso, deve ter seus 40 anos e deve satisfações das mais infantis a sua mãe – inclusive dorme com esta, embora tenha seu próprio quarto. (Não posso deixar de lembrar de Cisne negro, que parece se aproximar desse enredo de Haneke, embora sem a mesma força dramática.) Ela mutila sua genitália e parece ter prazer com isso – aqui nova relação e de novo ponto para o Haneke: no filme Anticristo, Lars von Trier, que é muito bom diretor, mas excêntrico demais, mostra uma cena parecida com isso que descrevi antes, porém, com o fetiche da imagem, da apelação da violência, perde potência dramática, ao passo que Haneke, ao apostar na sutileza da violência, ele sim eleva a cena a um nível de tensão altíssimo.

            O filme de Haneke é muito bom, mas não podemos estar tristes ou pra baixo ao assistir, porque é um soco no estômago – coisa, aliás, típica desse grande diretor. Outro filme muito bom que retrata o masoquismo, sem o banalizar, como parece ser o caso daquele filme dos 50 tons de cinza, que eu não vi mas deduzo, é Saló ou os 120 dias de Somoda, do Pier Paolo Pasolini.

Rodrigo Mendes