Pelo título, Nelson Pereira dos Santos poderia pretender fazer de seu filme uma homenagem à “cidade maravilhosa” do Rio de Janeiro. Rio, 40 graus é, na verdade, um retrato à moda realista das desigualdades sociais e preconceitos raciais históricos do Brasil. O filme é de 1955, cinco anos depois da Copa do Mundo de 1950 no Brasil (e o futebol é um dos temas trabalhados pelo diretor).
Já no primeiro movimento do filme, a câmera acoplada em um helicóptero grava a cidade de cima. Nelson Pereira dos Santos foge da imagem tradicional do Cristo Redentor e do Pão de Açúcar como única referência (e é preciso dizer, referência para estrangeiro ver) e leva sua câmera para os morros da cidade. Como chamou Carolina Maria de Jesus em seu Quarto de Despejo (se tratando, no caso, da favela do Canindé em São Paulo), as favelas são isso, lugares em que os pobres são jogados, excluídos do centro, são o quarto de despejo das cidades. O livro da escritora é de 1960 e a relação com Rio, 40 graus é quase imediata.
O longa seguirá acompanhando cinco crianças negras da periferia indo vender amendoim em pontos turísticos. De maneira bem poética em vários momentos, deixa claro o protagonismo do filme: os de baixo. A cena que o menino entra de repente em um parque-zoológico e se encanta com os animais que estão lá é tocante e cruel. Nelson Pereira dos Santos não nos deixa esquecer das desigualdade e dos preconceitos e o menino é tirado à força, interrompendo aquele momento de experiência nova do menino. A cena também funciona como metáfora das barreiras enfrentadas pelos negros e pobres, indicando a restrição em que vivem pela opressão sistemática da sociedade brasileira.
Unindo a cultura popular de parte do Brasil como o futebol e o carnaval de maneira muito natural ao enredo que pretende contar, o diretor nos dá uma grande amostra de nossa sociedade, sempre tensionando-as em relação às classes sociais. Hoje em dia, quase setenta anos depois, é preciso cuidado para chamar carnaval e futebol de popular (essa é inclusive uma fala de um personagem que interpreta um jogador de futebol, reclamando de ser usado como um objeto). O preço dos ingressos para os estádios e a sofisticação de alguns desfiles de escolas de samba contestam isso, embora espaços fora dessa indústria de consumo se perceba sua raiz popular e muitas vezes também de luta. A construção narrativa é interessante, às vezes criativa como quando intercala cenas distintas mas fazendo-as conectarem-se analogamente, como o gol e o atropelamento.
Considerado o filme precursor do movimento que emergiria na década de 60, o Cinema Novo, que se propunha mostrar a realidade brasileira mas em moldes menos realistas, temos aqui um dos grandes filmes nacionais, no qual é possível perceber uma profunda crítica social alinhada a uma qualidade estética mesmo que precária tecnicamente pela época.
Rodrigo Mendes