14 de julho de 2018, Bruno Lima Rocha
Trago estas notas analisando um problema de fundo, os ovos das serpentes do fascismo sócio-empresarial (linha chilena) estão sendo chocados em escala industrial. Estamos em plena crise política, uma crise que abala as instituições da chamada “Nova república”, fruto da transição inaugurada a partir da Abertura Lenta, Gradual e Segura de tipo GGG (Geisel e Golbery, elogiada por Gaspari) e garantida pela Anistia, Ampla, Geral e Irrestrita – na sua segunda versão e através de jurisprudência obtida com o fim do AI-5. Na sequência, o Brasil quebrou mas, simultaneamente, a classe trabalhadora aparecia na cena política através do reformismo radical, então de base e legítimo. Graças a essa luta social intensa – mesmo que discorde das opções, as quais sigo em discordância – tivemos a versão substantiva da transição do autoritarismo na metade dos anos ’80, através da Constituição de 1988. Pois bem, é esta versão de democracia liberal com traços oligárquicos e elementos, contraditoriamente, substantivos e representados até há pouco, na tentativa de controle do orçamento público que está em jogo. E estamos perdendo o jogo.
Alguém pode afirmar que a disputa entre neoliberais e social-democratas não é para a esquerda se meter. No embate político eleitoral entendo que a afirmação está correta. Na disputa pelos rumos da sociedade brasileira, é justo ao revés. Minha maior preocupação neste momento é, modestamente, fornecer capacidade analítica por esquerda tentando, ao mesmo tempo, não ficar a reboque dos apoiadores do governo deposto através de um golpe jurídico-midiático-parlamentar e, menos ainda, colocando quem atua pela esquerda da política ainda mais à margem da centralidade dos acontecimentos.
Infelizmente, circula um discurso obtuso por uma parte da esquerda brasileira – minoritária, é verdade – que confunde o momento estrutural vivido no país – o da crise político-institucional, quebra do modelo econômico do capitalismo periférico e a ascensão das carreiras jurídicas como setores protagonistas no Estado brasileiro – com a radicalidade discursiva. Entendo, respeito e repito ser a capacidade de alinhamento fundamental para fazer política, ainda mais importante quando o sistema de crenças tem de estar acima das alocações de recursos de poder disponíveis na concorrência permitida no liberalismo. Mas, como costumo afirmar, a melhor posição é combinar serenidade, frieza analítica e fervor ideológico. Acontece, que tal combinação é difícil, bem difícil.
Antes nem farda nem toga. Agora, nem toga e nem farda.
Recentemente afirmei em programa local de TV – local, digo, transmitido para a Região Metropolitana de Porto Alegre/RS – que não me entusiasmava um ambiente político onde as pessoas sabiam de cor nomes de magistrados, ministros de tribunais superiores, delegados da PF e procuradores federais. Isso por si só já caracterizava a presença de uma – algumas – tecnocracias de carreira em franca ascensão dentro do aparelho de Estado. E, estas carreiras, pelo próprio poder da caneta e da toga, podem operar como – de fato – Poder Moderador nos atos da república. Acontece que o caldo já entornou e hoje, quem estiver fazendo política – mais dentro do que fora das urnas – necessariamente deve contar com bases e contatos no mundo jurídico.
Neste sentido, há algum paralelo com os anos ’50, quando o Estado-Maior do Exército estava dividido em Progressistas, Nacionalistas, “Democratas” e Intervencionistas. Estes últimos, gestando na Escola Superior de Guerra (ESG) dois partidos políticos, duas facções interna corporis e que viriam a disputar todo o poder do Estado para além da capacidade de governo. Na década em que Vargas pela primeira vez eleito presidente viria a se matar para não ser deposto, as forças políticas profissionais contavam com marechais – como o Marechal Henrique Teixeira Lott e o golpe preventivo que garantiu a posse de JK eleito -, aviadores – como os golpistas João Paulo Moreira Burnier, Haroldo Veloso e sua referência política Eduardo Gomes -, e navais como o contra-almirante Cândido Aragão (progressista) ou o almirante fascista Penna Botto -, dentre centenas de outros militares.
O outro paralelo se dá na interna do desenho de Estado no Brasil. Se a Nova República acabou, e acabou mesmo, e há uma evidente e brutal regressão de direitos, logo, é de se esperar um embate dentro das elites política, caos na interna do Estado e algum tipo de conflito social organizado. Mas, este último, o mais relevante para estruturar a sociedade debaixo para cima, precisa ser organizado e ter alguma referência para além do reboquismo ou a retomada do pacto anterior do governo deposto. E isso está bem difícil, embora sempre desejado. Talvez seja esta a dimensão mais complicada que torna vitoriosa a pauta baseada na luta pela recondução do governo deposto e, ao mesmo tempo, a necessidade de articulação cada vez maior das esquerdas mais à esquerda – onde me incluo como analista e apoiador.
Cabe observar o perigo real de avanço fascista em nossa sociedade. Explico.
Não se trata “apenas” da aventura de Bolsonaro no rumo da Presidência, embora este fenômeno por si só já assuste o bastante. Mas a difusão de um punitivismo baseado no pior do conservadorismo colonial – racista, elitista, nababo, misógino, entreguista, viralata – que agarra corações e mentes, tanto na geração de concurseiros profissionais, como da classe média para cima, na pirâmide que se entende olhando de cima para baixo – mesmo quando não passamos de uns pobres coitados com diploma, rezando para o mês acabar antes da chegada do próximo boleto de contas atrasadas – e vendo a maioria com asco e distância.
Nunca é demais recordar que o famigerado general Hamilton Mourão Filho, o militar que comandou a coluna golpista que desceu a estrada Rio-Bahia no sentido do Rio de Janeiro, era, na década de ’30, membro do setor de inteligência da laia dos “galinhas verdes”, a famigerada Ação Integralista Brasileira. Ou seja, a difusão das estupidezes de Plínio Salgado e Gustavo Barroso – este por sua vida retrógrada era um anti-cristão na Restauração Católica, espécie de versão brasileira do franquismo – penetrou, e fundo, no Estado Brasileiro, em especial no período da ditadura getulista ainda sob a Lei de Segurança Nacional e depois no Estado Novo.
Se vale a comparação, ao difundir as cloacas jorrantes da nova-velha direita na América Latina – versões atuais dos Chicago Boys e posturas demenciais a favor do proto-fascismo militar – tais manifestações de pensamento entram com vigor no aparelho de Estado, assim como sempre seguiram atuando no aparelho policial deste nosso país campeão em execuções extra-judiciais. A manilha de esgoto já estourou, os dólares gastos pela fundação dos Irmãos Koch, a lavagem cerebral promovida pela Atlas Network e adjacências já penetrou em camadas sociais médias e a ideologia do empresariado selvagem pode vir a superar a velha panaceia oligárquica nacional.
Aconteça o que acontecer em outubro de 2018, a cancha está aberta em 2019 e tudo, absolutamente tudo, pode vir a acontecer. A esquerda mais à esquerda terá tanta chance de influenciar nos acontecimentos quanto mais força social e organização de base devidamente articulada e fazendo sentido com a maioria, estes setores puderem incidir. A campanha eleitoral formal ainda não começou, mas a luta antifascista não espera soar o gongo para entrar no ringue.
Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em economia política, doutor e mestre em ciência política, professor de relações internacionais e de jornalismo, editor do portal Estratégia & Análise (estrategiaeanaliseblog.com / blimarocha@gmail.com)