09 de agosto de 2017 – Bruno Lima Rocha
Com este texto, em paralelo à difusão do pensamento descolonizado e de base latino-americana, além das análises de conjuntura, abro outra coletânea. Nesta pesquisa de relevo, vamos observar as interseções entre a circulação do capital financeiro, a financeirização dos países, os mecanismos centrais de governança (ou de consentimento para estas operações) e o complexo mundo das offshores e “paraísos fiscais”. A temporalidade desta pesquisa de relevo é no “ocidente” globalizado e no capitalismo avançado pós-2008.
Entre os anos de 2007 e 2008, o capitalismo financeiro quase colapsou a economia do “Ocidente”. A partir de então, ao invés de um esforço de regulação do capital financeiro e redistribuição de riquezas, houve justamente o oposto. O planeta vê um elevado patamar de desigualdade somado com a interdependência financeira e um fluxo constante de evasão de capital, diminuindo em todas as sociedades a capacidade de gerar Bem Estar. Uma das bases estruturantes desta acumulação na forma de obrigações e capital digitalizado é o sistema de bancos privados operando em termos mundiais, e o emprego do artifício de trustes e holdings offshores, através de baixíssima fiscalização nos chamados “paraísos fiscais”. Ao contrário do que é difundindo, estes “paraísos” não estão localizados majoritariamente em pequenas ilhas, e sim diretamente conectados ao centro do capitalismo financeiro.
A rede mundial Tax Justice Network (taxjustice.net) opera como um grupo de pressão mundial de advocacy, promovendo o embate direto contra os efeitos do fluxo financeiro em escala planetária. Um de seus projetos de maior impacto é o Índice de Segredo Financeiro (Financial Secrecy Index, FSI na sigla em inglês, financialsecrecyindex.com). Neste índice, são escalonados os Estados ou autonomias jurídico-administrativas operando como “paraísos fiscais” ou o conceito mais desenvolvido, o de “jurisdições secretas”.
Jurisdições Secretas conforme o FSI implicam uma definição mais ampla, dando conta do nível de segredo jurídico no que diz respeito à propriedade empresarial, controle acionário e legislação protetora para os conglomerados instalados nestes Estados. Além do nível de segredo, o conceito também abarca a escala de atividades através de empresas offshore, ou holdings de conglomerados instalados nestas soberanias sob a forma jurídica de empresas offshore. Assim, quanto maior o segredo legal no que diz respeito ao controle de empresas e a existência de offshores com suas características, formalizam o índice.
Segundo dados de 2015 – considerando que o FSI é gerado a cada dois anos – o fluxo de ilícitos financeiros oscila de um montante da ordem de US$ 1 a 1,6 trilhão de dólares (o FSI consulta os dados do Banco Mundial), incluindo uma perda de US$ 175 bilhões ao ano desviados de ajuda internacional. O fluxo de ilícitos também é o escoamento mais comum de desvios oriundos de evasão fiscal, fraude fiscal e o espólio do Estado. Tais fenômenos, comuns na periferia do planeta, podem atingir a área core de economias capitalistas da semi-periferia, tal como ocorreu com a Grécia, Itália e Portugal, além de evidências de corrupção estrutural e a punição consequente através de convênios de Cooperação Jurídica Internacional, desmontando pactos internos e possibilidades de desenvolvimento soberano com estratégia de posicionamento próprio no Sistema Internacional (SI).
Ao contrário do que circula de forma hegemônica, a evasão fiscal de ilícitos ou o fluxo de fundos sem origens não formam a maior parte dos ativos financeiros depositados formalmente em Jurisdições Secretas. O índice de depósitos externos oriundos de elites locais, classes dominantes nacionais e alta gerência global oscilam entre US$ 21 trilhões e US$ 32 trilhões de dólares. Para dados de 2016 do World Economic Outlook Database/FMI (ver: goo.gl/KUUWaZ) , a soma do primeiro total seria a do PIB dos EUA e da Alemanha em conjunto. Já a soma do segundo total equivale ao PIB da Superpotência e da China. Vale ressaltar que tais dados são conservadores, pois analisam de forma aproximada somente os depósitos em Jurisdições Secretas que seriam pertencentes aos “super ricos” (High Net Worth Individuals, HNWI na sigla do conceito em inglês). Tais dados foram apurados no estudo de profundidade e referência chamado de The Price of Offshore Revisited (ver: goo.gl/vG5jY3) e conforme seu autor, James S. Henry, não incluem ativos físicos de alto valor agregado, como embarcações, aeronaves, propriedade imobiliária e composição de controle acionário através de offshores sob o manto de segredo.
Para dados da pesquisa de 2010, os então 50 maiores bancos privados do planeta operaram mais de US$ 12.1 trilhões de dólares em investimento externo privado, incluindo bens, trustes e fundações, dentre estes, os de propriedade cruzada ou controle das próprias instituições financeiras. Para o período, as três maiores instituições financeiras do planeta, UBS, Credit Suisse e Goldman Sachs (nesta ordem), operaram mais da metade deste montante, indicando um crescente desde 2005. Ou seja, a bolha e a crise de 2007/2008 não alteraram o posicionamento destes conglomerados do capital fictício.
Basta cruzar os dados dos 20 maiores bancos privados do mundo (lista de 2010), verificando sob quais soberanias estas instituições se instalam e cruzar com a lista dos países com índice dos países com maior nível de Segredo Jurisdicional (FIS). Destes 20 maiores bancos, os países de origem são: Suíça, EUA, Reino Unido, Alemanha, França e Holanda. A concorrência entre estas jurisdições é brutal. Há uma guerra planetária entre Jurisdições soberanas provedoras de Segredo Financeiro disputando o fluxo de capital financeiro.
Dentre a lista do FIS, os 15 países com maiores facilidades para o fluxo financeiro são: Suíça, Hong Kong (associado a China continental desde 1997 e antes a Commonwealth), EUA, Cingapura, Ilhas Cayman (Commonwealth), Luxemburgo, Líbano, Alemanha, Bahrein, Emirados Árabes Unidos (Dubai), Macau (região administrativa especial da China continental, desde 1997), Japão, Panamá, Ilhas Marshall e Reino Unido (Grã Bretanha, que se somado com as autonomias territoriais ultramarinas sobe na lista dos países com alto nível de Segredo Jurisdicional).
O tema das Jurisdições Secretas internacionais ultrapassa a evasão fiscal, de divisas, lavagem de dinheiro e corrupção. A arquitetura financeira que coage os títulos de dívida pública dos países é a mesma que opera a favor do capital fictício transformado em obrigações resgatáveis, contando com o auxílio de empresas de advocacia especializadas em operações offshores. Assim, as Jurisdições Secretas e os fluxos de capital não são algo marginal no capitalismo financeiro. Ao contrário, ocupam posição central e tem como protagonista o sistema bancário privado mundial. Trata-se da forma hegemônica de acumulação privada de recursos coletivos da história contemporânea.
Bruno Lima Rocha é professor de relações internacionais e de ciência política
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