O último dia 12 de junho impôs a necessidade de debate público e mobilização sobre o direito ao aborto no Brasil. Isto porque o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, permitiu que fosse votado o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, sem anunciar previamente que o tema seria pautado e utilizando o recurso da votação simbólica. Naquelas condições, o regime de urgência foi aprovado, o que significa que o projeto poderia ser votado diretamente no plenário, sem a necessidade de ser debatido e analisado pelas comissões da Câmara dos Deputados.
Essa situação repercutiu rapidamente pelo país e resultou em indignação numa parcela expressiva da população. As razões são o conteúdo do PL 1904/24, que representa uma série de retrocessos aos direitos ao aborto legal no Brasil, conquistados desde 1940. Naquele ano, o código penal foi instituído e, apesar de manter o aborto como um crime, passou a considerar duas exceções em que esta prática poderia acontecer legalmente. A partir daí, o aborto passou a ser legalizado em caso de estupro ou de risco à vida da pessoa gestante.
O PL 1904/24 é uma ameaça direta a esses direitos conquistados, já que busca igualar o aborto de gestação acima de 22 semanas ao crime de homicídio, que prevê condenação de até 20 anos de prisão. Na prática, mesmo as situações de estupro e/ou risco à vida da pessoa gestante, em que o aborto seja realizado após as 22 semanas da gestação, seriam consideradas crime.
Diante desse cenário de retirada de direitos, movimentos de luta pela legalização do aborto espalhados pelo Brasil inflamaram as ruas e provocaram debates e ações sobre o tema durante, pelo menos, três semanas consecutivas. Conhecidas como Jornadas de Luta contra o PL 1904/24, as atividades atravessaram o mês de junho e causaram o adiamento da votação do projeto na Câmara dos Deputados.
Em Santa Catarina, a Frente Catarinense pela Legalização e Descriminalização do Aborto mobilizou uma agenda de ações na cidade de Florianópolis, além de apoiar ações que aconteceram em outras cidades, como Palhoça, Garopaba, Tubarão, Criciúma, Blumenau e Joinville. Dentre as mobilizações feitas estão atos, rodas de conversa, panfletagens, colagem de cartazes e murais, além de uma plenária transfeminista que aconteceu no último sábado (22), no Parque da Luz, região central de Florianópolis. Na plenária, houve uma pluralidade de movimentos sociais, que se reuniram para pensar estratégias de ampliação do debate sobre questões ligadas ao aborto localmente.
A intervenção mais recente das Jornadas de Luta aconteceu ontem, 27 de junho. A partir da compreensão de que o PL 1904/24 deve ser arquivado e não apenas adiado, os movimentos de luta pelo aborto no Brasil estiveram novamente nas ruas. O arquivamento significa que um projeto de lei deixa de tramitar definitivamente.
Em Florianópolis, o ato de ontem aconteceu em frente ao terminal de ônibus que fica no centro da cidade, o TICEN. Manifestações simbólicas tomaram o espaço, entre jograis, projeções e performances artísticas. Um boneco com a imagem de Arthur Lira foi queimado e uma projeção com os dizeres “Fora Lira” iluminou uma das torres do mercado público, como expressão de revolta contra o deputado que tem facilitado a tentativa de retirada de direitos conquistados.
O projeto de lei 1904/24 ficou conhecido como PL da Gravidez Infantil, entenda o porquê
Proposto por Sóstenes Cavalcante, um deputado do Partido Liberal (PL) do Rio de Janeiro, e assinado por outros 32 parlamentares, o PL 1904/24 tem consequências nefastas para todas as pessoas que precisam interromper a gestação.
Essa situação torna-se mais grave no caso de crianças estupradas por duas razões principais. A primeira razão é a relação das crianças com o próprio corpo, uma vez que são ainda incapazes de perceber as mudanças causadas por uma gestação. Isso faz com que o tempo de descoberta da gestação e, consequentemente, da necessidade de interrupção possa acontecer num estágio já avançado desse processo. A segunda razão é que o estupro de crianças ocorre majoritariamente por violentadores conhecidos da vítima, o que muitas vezes as coloca numa situação de violência continuada. Isso significa tornar mais difícil e tardio o recurso ao aborto, mesmo se a gestação for descoberta em sua fase inicial.
Esse conjunto de condições faz com que a necessidade da prática do aborto em gestações acima de 22 semanas seja mais frequente em crianças estupradas, o que as coloca no centro das repercussões negativas do PL 1904/24. Por esta razão, grupos que lutam pelo direito ao aborto passaram a se referir ao Projeto de Lei 1904/24 como PL da Gravidez Infantil.
Confira abaixo registros fotográficos das ações que aconteceram em algumas cidades de Santa Catarina nas últimas semanas.
A foto da capa também é da manifestação em Florianópolis.