Foto da capa: Agência Pública
Por Repórter Popular RS
Hoje, 29 de maio, seguem efeitos trágicos das enchentes e da crise climática no Rio Grande do Sul. Em meio a tantos problemas práticos e objetivos que a população afetada necessita, a Prefeitura de Porto Alegre (RS) anunciou parceria com uma empresa de consultoria que tem trabalhado na melhora da imagem de empresas envolvidas em processos criminais.
A Prefeitura de Porto Alegre anunciou, no dia 13 de maio de 2024, uma parceria com a empresa de consultoria Alvarez & Marsal para a avaliação de riscos e criação de planos após as enchentes que assolaram a cidade e o estado do RS.
A A&M capitaliza tragédias, atua nos casos de crise corporativa e já foi contratada por empresas, como a Vale do Rio Doce, que provocou a tragédia-crime em Brumadinho e Mariana, em Minas Gerais, e pela prefeitura de Nova Orleans após o furacão Katrina em 2005.
A empresa global de “gerenciamento de recuperação e melhoria de desempenho de empresas” esteve envolvida na privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (CORSAN/ RS) e também já foi contratada por empresas que estavam passando por crises públicas em consequência de crimes de corrupção após a Lava Jato, como a OAS e a Odebrecht.
Em resumo, a Alvarez & Marsal contribui na recuperação judicial e de valor das empresas que estão sendo processadas pelo Estado e/ou por pessoas afetadas por crimes ambientais. Segundo consta, os bondosos empresários (um deles, Pedro Bortolotto, que é portoalegrense e faz parte da direção da empresa no Brasil) estão sensibilizados com a situação do RS e propuseram à Prefeitura um serviço inicial gratuito.
Conforme noticiado em várias mídias, o acordo previa inicialmente um trabalho de diagnóstico que duraria 60 dias. Caso houvesse necessidade de continuar, fariam um novo orçamento por licitação pública. Após pressões e críticas, o acordo foi reduzido para um trabalho de 30 dias da empresa e, caso ela seja contratada, não se sabe o quanto será pago à A&M. O caso da atuação em Nova Orleans, por exemplo, saiu por US$ 16 milhões de dólares.
Mas por que essa notícia causou polêmica? O que faz a atuação da Alvarez & Marsal ser vista como um problema numa situação como essa? O Repórter Popular apurou investigações feitas por outras mídias e consultou fontes para entender como trabalha a A&M e de que forma a empresa global capitaliza tragédias.
A Alvarez & Marsal é uma empresa de consultoria que visa ajudar empresas em problemas complexos, crises e momentos difíceis. O site institucional da A&M utiliza termos bonitos e uma linguagem um tanto vaga, que dificulta entender do que de fato se trata. Tem atuações na área de conflitos ambientais, educação e serviços públicos, entre outras.
Em bom português, adiantamos: ela livra a cara dos empresários por crimes ambientais, dificulta e emperra os processos de indenização das vítimas e inicia processos de privatização. Vamos buscar entender isso com exemplos práticos onde ela atuou.
Brumadinho, Vale do Rio Doce e Alvarez & Marsal
5 anos já se passaram da tragédia-crime ocorrida em Mariana e Brumadinho (MG), quando barragens da empresa Vale do Rio Doce romperam. Esses rompimentos inundaram com lama e rejeitos dos minérios de ferro vastas áreas, destruíram a cultura local e podem ter contaminado de forma grave ecossistemas. Segundo a AVABRUM (Associação das Vítimas dos Atingidos da Barragem de Brumadinho), 272 pessoas foram foram mortas e 3 estão desaparecidas. A Defesa Civil estima que 24 mil pessoas foram afetadas de alguma forma.
É sabido, através de pesquisa feita nos processos de investigação da Polícia Federal, que houve muitos alertas sobre riscos de rompimento na estrutura da barragem. Funcionários da Vale do Rio Doce e da empresa de consultoria Tüv Süd respondem por crimes.
As análises dos graves danos ao meio ambiente e à saúde da população ainda são estudados, mas os impactos iniciais são alarmantes, envolvendo poluição de rios inteiros e muito sofrimento vivido por parte da população.
No caso de Brumadinho, nenhuma decisão por punição de crimes, como homicídio e crimes ambientais, ocorreu; algumas indenizações por danos coletivos individuais começam a acontecer, lentamente, mas principalmente em acordos de indivíduos com a empresa na justiça, o que torna os reparos menores.
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) auxilia a criar formas coletivas de negociação com a participação direta de envolvidos, não incentivando esses acordos feitos entre poucos e fazendo pressão coletiva para movimentar os processos. Além disso, faz a crítica sobre esses modo de extrativismo e matriz energética que podem estar contribuindo para o agravamento de questões climáticas e na intensificação de desastres e tragédias.
Seguindo a ideia de que todo crime tem direito à defesa, digamos que está bem contratar advogados para se defender. Mas a contratação de um grupo de consultoria que visa melhorar a imagem e recuperar o valor da empresa, após uma tragédia-crime, é enterrar a memória e dignidade das pessoas na lama tóxica que a empresa despejou nas pessoas, nas florestas locais e nos rios.
Os efeitos desses crimes ainda são vividos pelas pessoas locais, e são essas que necessitam de todo o apoio para se reerguer, não a Vale do Rio Doce. Mas, o que a A&M faz em busca de lucratividade é justamente ajudar os proprietários dessas grandes empresas a se reerguerem, e não a população. É o que revelou o Jornal GGN.
Privatização da CORSAN no RS
A Alvarez & Marsal também atuou no processo de privatização da CORSAN, em 2023, no governo de Eduardo Leite. Aparentemente, há sérias questões envolvendo o uso de interesses. Segundo denúncias, a empresa trabalhou simultaneamente em consultoria da CORSAN e da AEGEA, empresa privada de saneamento que fez a compra. O problema, nesse sentido, é que a Alvarez & Marsal pode ter tido acesso a dados e informações que facilitariam o processo de aquisição por parte da empresa privada, além de vínculos entre familiares das duas empresas (Alvarez & Marsal e AEGEA).
Segundo estimativas levantadas, a CORSAN foi vendida por R$ 1,5 bilhão a menos do que vale. O processo de privatização parece ser um dos objetivos pelos quais trabalha a empresa Alvarez & Marsal, como veremos na atuação em Nova Orleans.
No caso de Porto Alegre, trabalhadoras e trabalhadores do DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgoto) foram incansáveis atuando nos reparos e ações emergenciais durante a tragédia das enchentes de maio de 2024. Além disso, foi noticiado largamente de que muitos alertas técnicos foram feitos pelo departamento desde 2018, avisando que em breve problemas poderiam ocorrer, sem os devidos reparos.
Pelo histórico da Alvarez & Marsal, podemos pensar que uma possibilidade é que eles trabalhem na ideia de que o problema está no DMAE ser um departamento público, e não que os governos da cidade se omitiram dos alertas sobre reparo das bombas ou sobre reivindicações para melhora da estrutura física e de recursos humanos do departamento.
Furacão Katrina e a privatização da educação e transporte público
No dia 12 de maio de 2024, o programa Fantástico da TV Globo fez uma matéria sobre Nova Orleans, como um caso que seria exemplo de recuperação das tragédias ambientais e climáticas. Em 2005, a cidade foi completamente devastada por inundações após o furacão.
No entanto, existem muitas dúvidas se esse é um caso-exemplo. A atuação da Alvarez & Marsal, nesse caso, foi dar seguimento a um processo de privatização do ensino público e do transporte, demitindo 7 mil professores locais, muitos envolvidos com a cidade, com a cultura e com movimentos locais. Com isso, criou-se uma rede de ensino gerenciada por grupos empresariais.
Além disso, a cidade passou por um processo de transformação dos seus territórios, da cultura e da presença da população negra. Oliver Cyran, por exemplo, conta que pontos atingidos foram modificados para serem locais de turismo de luxo, aumentando os aluguéis e o custo de vida do local e gerando uma migração-expulsão das pessoas que tradicionalmente moravam ali.
Acompanhando músicos e trabalhadores precários, Cyran mostra como a cidade se transformou:
a) Em relação à moradia, alguns locais aumentaram entre 50% e 100% o valor dos aluguéis; centenas de apartamentos populares foram destruídos e, em seu lugar, surgiram conjuntos com habitações precárias, feitas às pressas e controladas por regras rígidas como proibição de churrasco e alimentação em grupo nos locais abertos; é proibido tocar música, é proibido plantar (antes, havia nesses conjuntos habitacionais pomares públicos onde moradores tinham árvores frutíferas e consumiam livremente).
b) A população negra da cidade tem migrado cada vez mais, ao número dos milhares, para lugares periféricos distantes: uma migração forçada (expulsão) que a transformação da cidade e o aumento do custo de vida geram na vida das pessoas.
c) A cidade tem a cota de valor do salário mínimo mais baixa permitida nos EUA, US$ 7,25 dólares por hora, valor que não aumenta há dez anos apesar de todas as outras mudanças econômicas ocorridas.
d) Antes conhecida como cidade cultural, a presença de músicos de jazz e outras manifestações culturais eram abundantes, estavam presentes nas escolas, nas ruas. Hoje, não há aulas de música nas escolas e músicos antes reconhecidos têm empregos auxiliares para sobreviver, como comércio e Uber.
Pode ser um caso-exemplo, mas um exemplo de que?
A Alvarez & Marsal vai ajudar os atingidos pelas enchentes no RS?
As pessoas do Rio Grande do Sul, trabalhadoras e trabalhadores das regiões periféricas e centrais, pessoas pobres e habitantes de locais periféricos e centrais, estão vivendo problemas concretos: como recuperar seus locais de moradia? E os que não tem moradia?
Será possível seguir vivendo em áreas de risco? Como recuperar itens perdidos? Como recomeçar diante de tantas perdas? O que fazer se não há mais para onde ir? Como se refazer de perdas das pessoas que amam em meio a tantos problemas?
Além de ser uma tarefa urgente responder essas perguntas, e da qual vemos poucas respostas dos governos e empresas, é lamentável a notícia desse grupo corporativo de consultoria no envolvimento com a Prefeitura de Porto Alegre. É o tipo de consultoria que favorece apenas grandes empresários, quem têm dinheiro para investir em imóveis caros e outros tipos de comércios e negócios.
Todas essas informações deixam evidente que o grupo empresarial, que tem em seu histórico o trabalho ativo de defesa e reconstrução da imagem de grandes empresários envolvidos em crimes e negligências contra pessoas e contra o meio ambiente, bem como atuou na privatização de setores fundamentais ao bem comum, como a educação e a água, não está interessado em resolver os anseios da população.
Portanto, a Alvarez & Marsal não irá ajudar os atingidos pelas enchentes no RS, mas sim os políticos e empresas que causaram essa tragédia ambiental sem precendentes.
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