Artigo de opinião por Melka Barros *
Durante a campanha de 2018, Guedes disse que iria dar continuidade ao trabalho de Temer, mas com o pé no acelerador. Enquanto o primeiro abriu caminho para o neoliberalismo em 2016, o segundo consolidou a crise social fazendo um governo cuja inflação e o congelamento de salários têm cortado na pele. O resultado dessa política econômica é a fome e o desemprego de um povo que busca sobreviver se amontoando em filas para receber restos de comida.
Por uma questão de prioridades, a gestão do dinheiro público pelo governo, seu manejo, finalidades e aplicação, têm pressupostos diferentes da garantia de renda digna familiar. Nos últimos anos, as despesas suportadas estão desde pensões para filhas de militares, juros de dívida pública com bancos que nunca foi auditada, até viagens do presidente e de seus filhos. Por outro lado, a sonegação fiscal de grandes empresas segue e o déficit de receita aumenta a cada ano, comprometendo o orçamento público.
Em meio a mais essa crise econômica, Paulo Guedes busca manobras legislativas para furar o teto de gastos criado pelo seu antecessor, Michel Temer. No dia 09 de agosto Jair Bolsonaro enviou para o Congresso Nacional proposta de emenda à constituição que altera o regime de pagamento de precatórios, que são títulos de dívidas judiciais da fazenda pública com pessoas físicas e jurídicas.
Precatórios são uma espécie de cheque que deve ser pago a quem ganha processos contra o poder público, geralmente servidores como professores, profissionais da saúde, técnicos de alguma área do funcionalismo, ou profissionais de serviços gerais. Trata-se de pedidos judiciais de aposentadorias, indenização por acidente de trabalho e outros assuntos. Esses processos se arrastam por anos até receberem uma sentença definitiva e as dívidas que surgem da derrota do poder público, que são os precatórios, passam a integrar os gastos obrigatórios do orçamento. Esses gastos são distribuídos e alocados no orçamento público através da Lei Orçamentária Anual (LOA), que deve estabelecer o orçamento da União para aquele ano, estimando as receitas e as despesas do Governo Federal.
Além disso, em 2016 o Governo Michel Temer propôs a fixação de um teto de gastos através de emenda constitucional aprovada pelo Congresso Nacional, congelando o orçamento público para investimentos sociais sob a falsa justificativa de que o arrocho neoliberal iria permitir ao país crescer econômica e socialmente. A emenda que instituiu o teto de gastos tem previsão para durar vinte anos, só podendo ser revista após uma década. Cinco anos depois, a pandemia e as reformas trabalhistas e da previdência, assim como a retirada de direitos básicos, aprofundaram a fome, o desemprego e a miséria do povo brasileiro. Chegamos ao final de 2021 com orçamento público no limite para os gastos obrigatórios. Ciência e tecnologia já sofreram com um corte de 92% de suas verbas e outras pastas agonizam sem investimento público algum.
Em 2021 a despesa com os precatórios federais no orçamento público rodam em torno de R$ 54,7 bilhões e no orçamento de 2022 a previsão é pagar um montante na casa dos R$ 89,1 bilhões. Sem dúvidas, é um valor alto comprometido, na maioria das vezes, com o pagamento de servidores públicos. Portanto, não é surpresa que Paulo Guedes queira desviá-lo. De acordo com a proposta de emenda à constituição, seria adotado o parcelamento de alguns e o adiamento de outros, além da alteração do índice de correção monetária, diminuindo o valor final pago a credores. A expectativa do governo com a aprovação da PEC é criar um espaço de R$ 91,5 bilhões no teto para 2022.
Bolsonaro alimenta a tese de que esse valor liberado pelo adiamento dos precatórios deve servir ao Auxílio Brasil, um novo programa de transferência de renda criado pela medida provisória 1.061, que ainda não foi convertida em lei e visa a substituir o Bolsa Família, com a elevação do benefício para R$ 400, mas com data para acabar: dezembro de 2022, após as eleições. No entanto, o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para o próximo ano, já enviado ao Congresso pelo Presidente, estabelece para 2022 os mesmos recursos alocados em 2021 para o Bolsa Família, em torno de R$ 34,7 bilhões, com meta de atendimento de 14,7 milhões de famílias.
Caso a PEC seja aprovada e haja o espaço de R$ 91,5 bilhões liberado no orçamento de 2022, não necessariamente esse valor será aplicado no Auxílio Brasil, já que a PLOA não prevê dessa maneira. Por outro lado, mesmo que seja aplicado, apenas cerca de R$ 50 bilhões seria utilizado para bancar a elevação do auxílio. Para onde vai o restante do valor desviado?
A PEC dos precatórios é uma manobra legislativa para o governo adiar o pagamento de dívidas por um lado e furar o teto de gastos por outro. É a pedalada fiscal de Bolsonaro, mas dessa vez invisível para a grande mídia e o judiciário. O plano de Guedes com mais essa manobra legislativa é abrir caminho para Bolsonaro utilizar o valor antes comprometido no Orçamento com sua reeleição em 2022. Acontece que os precatórios são considerados pela constituição gastos obrigatórios do governo, e assim como os salários e aposentadorias de servidores, não podem deixar de ser realizados. Estamos falando de dívidas de caráter alimentar, processos judiciais que a União já perdeu e cujo pagamento está sendo aguardado pelos servidores que ganharam.
A PEC já foi aprovada em primeiro e segundo turno na Câmara dos Deputados, em sessões relâmpagos que contam com a integral disposição daqueles determinados a retirar direitos. Bolsonaro ensaia aqui sua pedalada fiscal, crime de responsabilidade que há alguns anos foi motivo para impeachment de presidente, mas que no cenário atual parece ter livre passagem.
* Melka Barros é auditora fiscal de tributos, escritora e militante de Direitos Humanos e da luta pelos territórios de povos tradicionais no Ceará.