Não é de hoje que os povos indígenas são perseguidos. Não é de hoje que a população negra é oprimida. A prisão de Galo e de seus companheiros retratam isso. Essas prisões mais uma vez fez ecoar o quanto nos querem calados, domesticados.
Fogo no Borba Gato
Na tarde de sábado do dia 24 de julho, em Santo Amaro, zona Sul da cidade de São Paulo Capital, um grupo de pessoas atearam fogo no momento de Borba Gato.
Na frente da estátua, o grupo estendeu uma faixa com a frase “Revolução Periférica – a favela vai descer e não vai ser carnaval”. A ação direta foi uma forma de protesto contra a imagem do bandeirante, visto como símbolo do genocídio, estupro e roubo das terras dos povos indígenas e da população negra escravizada.
Para uma parcela da população a ação foi vista com maus olhos, argumentando que o ato foi “um atentado sem fundamentos contra à preservação dos monumentos e história do Brasil”. Porém, para o grupo a intenção do protesto era incentivar o debate sobre qual é a história do Brasil e porque mantemos a estátua de uma figura como Borba Gato e não de outras como Zumbi dos Palmares e Dandara.
Prisão da periferia
No dia 28 de julho, iniciou-se uma investigação sobre o incêndio de Borba Gato mirando os integrantes do grupo “Revolução Periférica”. Paulo Lima (Galo), foi relacionado como integrante do grupo e ao saber, através dos seus advogados, sobre um pedido de prisão preventiva decidiu ir até a polícia prestar depoimento.
Chegando ao DP foi surpreendido com a efetivação de sua prisão preventiva e de sua companheira, Géssica. Além dos dois, Danilo Silva de Oliveira (Biu) também foi preso pelas mesmas acusações.
Os dias seguintes foram de intensas incertezas por parte dos acusados, que tiveram pedidos de Habeas Corpus negado, depois autorizados pelo STJ negado de novo pela juíza Gabriela Marques da Silva Bertoli (5). A liberdade de todos os acusados foi concedida somente no dia 10 de agosto.
Mas por que a polícia e a justiça consideram tão importante a prisão imediata de pessoas acusadas por um crime que não incorreu em violência direta contra a vida de ninguém? Quem são esses juízes e secretários de segurança que se importam tanto com um monumento?
Borba Gato, ontem e hoje.
O monumento em questão é de Manuel de Borba Gato, um dos bandeirantes responsáveis pela invasão territorial das terras brasileiras. A sua missão na antiga Capitania de São Vicente, ( que hoje é a cidade de São Paulo), era abrir caminhos para que outras capitanias fossem estabelecidas. Essa exploração era baseada na extração de ouro e matança de todos os povos originários que atravessavam seu caminho.
O Brasil foi forjado pela destruição, e mesmo depois de 500 anos essa destruição se mantém ativa. As estruturas de poder que controlam o Brasil ainda são as mesmas que controlavam antes. As famílias de políticos e de generais, são as mesmas que disseminaram violência e extermínio.
O sangue que corre nas veias de João Camilo Pires de Campos, general que atua na Secretaria estadual de Segurança Pública de São Paulo, responsável pela Polícia Civil do Estado, é o mesmo dos bandeirantes. O general é descendente direto da família Pires de Camargo, família que mantém poder na cidade de São Paulo desde 1640.
O governador João Dória, da mesma cidade, também tem herança colonizadora. Sua origem vem da família Costa Dória, composta por senhores de engenho e escravizadores. Ou seja, uma das maiores metrópoles do mundo é gerida ainda por mãos que tem em sua origem uma herança colonizadora e genocida.
Esse clube de proteção entre os poderosos não é novidade, assim como observou o pesquisador Ricardo Costa de Oliveira, da Universidade Federal do Paraná, que afirma que boa parcela dos generais do Brasil são de famílias que estiveram nos mais altos cargos militares desde o período colonial.
Não à toa que, João Camilo é responsável pela polícia civil, que investiga o caso da queima do monumento. E que no dia seguinte ao fato, empresários tradicionais de São Paulo se dispuseram a pagar pelo conserto da estátua.
As famílias opressoras são as mesmas, os genocidas são os mesmos, só mudam de ano e de endereço. Enquanto nas nossas veias, população oprimida, correm sangue de lutadores e sonhadores, nas veias desses, correm sangue de assassinos.
Revolução Periférica
Os ricos desde sempre tomaram nossas terras. Ocupando cargos políticos, querem ter o controle de nossos meios de existência, controle de nossas vidas, perseguindo aqueles e aquelas que compõem a camada popular da sociedade. Bancada ruralista, militares no comando, tudo isso é um plano de extermínio que vem de séculos atrás, e que isso seja entendido por nós, povo guerreiro que trabalha, sustenta nossas famílias apesar das adversidades. Nós, em contra ponto à eles, não precisamos ter sobrenome de bandeirante e coronel (e sangue nas mãos) para poder trilhar nossos próprios caminhos. Pois aqui ninguém é playboy e vive do sobrenome de ninguém.
Diferentemente dessas pessoas, Danilo Biu trabalha como entregador de aplicativo e faz um trabalho pensado para a sua comunidade. Atuando como líder comunitário, Biu assiste famílias da comunidade do Vietnã (comunidade de São Paulo), sendo solidário com aqueles que mais precisam dentro da pandemia em seu bairro. Paulo Galo, também entregador de aplicativo, discute sobre a precariedade da classe dos entregadores de aplicativos, porém, antes disso, já atuava dentro da cultura hip-hop e da musicalidade, trazendo o Rap como potência de crescimento das comunidades. A prisão de dois homens negros, trabalhadores, perseguidos injustamente pelos aparates do Estado, só nos faz crer que essas famílias colonizadoras, frutos de bandeirantes como Borba Gato e tantos outros, se mantém na ativa para proteger seus pares e seus próprios interesses. Esses são passos dados para um plano de hegemonia política, antipovo, racista e autoritária.
Não é de hoje que os povos indígenas são perseguidos. Não é de hoje que a população negra é oprimida. A prisão de Galo e de seus companheiros retratam isso. Essas prisões mais uma vez fez ecoar o quanto nos querem calados, domesticados.
Mas e a estátua de Borba Gato? Pouco importa. Esses são símbolos de poder, que visam manter a lógica de controle do Estado. O que o coletivo Revolução Periférica organizou nos faz pensar quais símbolos nos representam, e qual história queremos contar. A população oprimida não vê pertencimento em pedaços de pedras, muito menos em colonizadores assassinos. Nossa luta é viva, ela requer movimento. Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor. Se eles nos perseguem, nós resistimos. Se existe herança escravista nos cargos políticos, existem comunidades inteiras reagindo.
Pois, quando a favela descer, não vai ser carnaval, não vai ser brincadeira.
*Texto de Nathália Oliveira, historiadora e mestranda em história pela UFRGS.