Opinião* Kauan Willian**
De “holocaustos coloniais” ao avanço da necropolítica em tempos de pandemia
Em suas célebres obras, as quais incluem “Ecologia do Medo”, “Los Angeles e a fabricação de um desastre”, “Cidade de Quartzo” e “Holocaustos Coloniais”, o historiador Mike Davis analisa os chamados “desastres naturais” dentro de uma ótica classista. Para ele, a grande parte dos fenômenos naturais que afetam a população como secas, enchentes, furacões e erupções vulcânicas não guardam apenas aspectos geográficos ou biológicos, mas devem ser olhados a partir da luta de classes e como são usadas para a legitimação da classe dominante com a conformação do capitalismo. Nesse sentido, não só a lógica do capital, e do extrativismo colonial e imperialista, acelera ou fabrica secas e o “aquecimento global”, tema já é batido, mas como tais desastres são sempre usados para realçar desigualdades existentes e acabam favorecendo o poder político de determinado grupo.
Em “Holocaustos coloniais”, por exemplo, sua hipótese é a de que, com o fenômeno El Niño, no século XIX, provocando seca em várias partes do mundo como a China, Índia e Brasil foram decisivos para a empreitada de subordinação dessas e outras regiões ao imperialismo e ao capitalismo do norte global. Dentro desse fenômeno, os camponeses, mais pobres e desestruturados, ficariam mais reféns das elites locais, e estes, por sua vez aos governos nacionais em ascensão naquele momento e dependendo exatamente da quebra de poderes regionais. Para isso, não obstante, são pressionados pelos países do capitalismo central para a continuação de sua subserviência e, ao continuar seu extrativismo para a conformação do capitalismo industrial, reforçaram propositalmente essa vulnerabilidade (DAVIS, 2002).
Nesse sentido Lênin é elucidativo ao analisar esse período e afirmar que “à medida que foi aumentando a exportação de capitais e se foram alargando, sob todas as formas as relações com o estrangeiro e com as colônias e as “esferas de influência” das maiores associações monopolistas, a marcha “natural” das coisas levou a um acordo universal entre elas, à constituição de cartéis internacionais” (LÊNIN, 1984, p.144). Essas secas, portanto, caíam como uma luva ao processo de monopólio do imperialismo, a fase superior do capitalismo.
Nos dias atuais, quando a pandemia do Covid-19 foi alastrada em nível global logo no início de 2020, a organização social capitalista vigente mostrou sua ineficácia, mesmo com aparatos suficientes para controlar a pandemia. Os aeroportos não foram fechados com prontidão e, em áreas com grande circulação de pessoas, como nas centrais do capitalismo comercial, como na Europa ocidental e nos EUA, os níveis de contaminação e de mortes cresciam exponencialmente a cada dia. Na Itália, por exemplo, já no dia 18 de março, teve seu maior número de doentes em 24 horas; com mais de 4.200 infectados, numa população de quase 60 milhões. No mesmo dia também foi contabilizado o maior número de mortes em 24 horas, sendo 475 mortes. A resposta de economias planificadas como China ou com maior envolvimento na questão de saúde pública como no Vietnã foi melhor, como nesse último país que, com quase 90 milhões de habitantes, no mesmo período havia apenas 300 casos. Nesse caso, a resposta foi imediata controlando as fronteiras logo em fevereiro e diminuindo o fluxo em trabalhos não essenciais. Países espelhados nas medidas que as organizações de saúde haviam proferido tiveram melhores resultados, como a Austrália que com intensas medidas de restrição, controle fronteiriço, monitoramento de casos, contribuíram para o índice de apenas 909 mortes e 28.750 casos desde o início da pandemia, numa população de quase 23 milhões de habitantes (dadoscoronavirus.dasa, 2021).
Isso fez com que setores progressistas de diversos países em que as políticas públicas diante da pandemia estavam vacilando, criassem campanhas pelo direito à quarentena e por auxílios emergenciais para setores desfavorecidos e empobrecidos na sociedade. No caso do Brasil, líderes de partidos de oposição ao governo apresentaram logo no dia 25 de março a criação de um programa de renda básica emergencial. Apesar de várias correções do projeto original e resistência inicialmente de Bolsonaro, o projeto foi aprovado, permitindo o acesso de R$600,00 à desempregados e trabalhadores informais, chegando à R$1200 para famílias, além do auxílio aos pequenos comerciantes que precisavam afastar funcionários (camara.leg.br, 2021). Não obstante, as políticas de lockdown não funcionaram por muito tempo no país. Discursos e posições negacionistas que estavam crescendo nos últimos anos, e que garantiram a ascensão do bolsonarismo, se chocavam com a necessidade de classe trabalhadora em se manter em atividade forçada pelo patronato.
Esses últimos fatores refletiam a escalada do neoliberalismo na última década, e em vários países que retornava em sua fase mais brutal neoconservadora e neofascista depois que derrotaram setores do liberalismo social. A “necropolítica”, ou seja, políticas que guardam (consciente e inconsciente) projetos de genocídio e morte contra determinados grupos e corpos, principalmente pobres e racializados, e que foi fundamental para os estados nacionais e potencializado por meio do neoliberalismo, como analisa o historiador Achille Mbembe, não só impediam as políticas públicas diante da pandemia, mas como podiam se beneficiar com ela (MBEMBE, 2018).
No final de 2020, a lista da Forbes revelava o aumento da concentração de renda de bilionários em todo mundo, e inclusive dos 20 mais ricos brasileiros. Se houvesse um medo que a pandemia pudesse minar a força de trabalho, ao contrário, a classe dominante havia percebido que seu domínio poderia ser ainda mais extendido e que possivelmente o caminho era o empobrecimento ainda mais da população de países periféricos e a destruição do pequeno comércio, legitimando o barateamento da mão de obra. Dessa maneira, ainda melhor para as potências imperialistas que poderiam se aproveitar, assim como foi no fenômeno do El niño, do enfraquecimento da soberania nacional.
O esfacelamento da multidão e a miséria do personalismo e da agenda eleitoral no Brasil
Desde os protestos que marcariam o início da desindustrialização, passando pelos ataques antiglobalização, com a ascensão do neoliberalismo, para autores como Michael Hardt e Antônio Negri, designariam um novo agente revolucionário, a multidão. Para eles, exatamente amorfa e complexa, a multidão ocupando as ruas seria a única forma possível para enfrentar amplas formas de opressão descentralizadas, como ocorreu na Primavera Árabe, nas ocupações de Wall Street nos EUA e em Junho de 2013 no Brasil (HARDT; NEGRI, 2005). Consideramos aqui que, embora essa forma de multidão insurrecional e amorfa seja uma realidade, isso não encerrou outras formas de luta mais tradicionais e nem a classe trabalhadora. Greves e construções sindicais continuaram muito fortes, como é possível observar em países industriais dos tigres asiáticos, e também na Índia e China (LINDEN, 2009). Movimentos comunitários e a luta de terra, como no caso brasileiro, também continuam dando o tom da luta no caso da América Latina.
Não obstante, é fato que nos centros comerciais, a presença do precariado – uma rede informal de trabalhadores sem direitos – construindo alianças com pautas da cidade, comuns à classe trabalhadora, como foi o caso do transporte no Brasil, e construindo um movimento de massas, estava se tornando ameaçador à classe dominante em todo mundo. Como muitos desses movimentos são amorfos, destinos e metas são incontroláveis, o que pode ser facilmente cooptado por setores direitistas e conservadores como foi o caso da Primavera Árabe. Mas isso não é novidade, boa parte das revoluções do século XX também guardava diferentes grupos e interesses, e muitas vezes o destino das revoluções radicais foi apenas uma legitimação nacional. É por isso que, também nos processos atuais, podemos ir desde Primavera Árabe, até o caso do Chile atual, onde os protestos massivos significaram uma pressão para mudanças estruturais, inclusive reclamando uma nova constituição, ameaçando poderes mais tradicionais e reacionários. Mas, mais do que isso, deixa um rastro de outro tipo de política, feita pela vontade das massas e das assembléias.
No caso brasileiro, o protesto de massas de caráter revolucionário de 2013 sendo reprimido, em parte, pelo governo que assumia posições liberais sociais e progressistas, e subvertido por conservadores e neoliberais, culminou numa armadilha. De um lado, o que restava era uma esquerda recuada, que acreditava no caráter das instituições democráticas e que aposta nas eleições e na representação de suas pautas no Congresso e no Senado. Parte desses grupos, após cair com um golpe de setores entreguistas, demonizava o caráter massivo das multidões, inclusive sem fazer diferenciação de suas pautas e composição de classe entre os primeiros levantes revolucionários e a sua outra face, com outros agentes e pautas que, na realidade, estavam subvertendo a tática de massas. Com o movimento de massas findado entre a esquerda, o que restava na cultura política e no ideário, inclusive de jovens que entrariam agora na política, seria a espera ou a conformação de líderes ou personas políticas, do passado ou do presente, que as salvariam do fascismo. A defesa da ciência e da tática do requerimento da quarentena eram a mistura perfeita para essa posição de espera e congelamento da massificação de protestos ou da defesa de pautas recuadas.
De outro lado, o crescimento de um movimento massificado conservador, a base do bolsonarismo, mesmo com o negacionismo diante das mortes e a resistência aos auxílios emergenciais para a população pobre, encontrou uma ponte e diálogo com comerciantes e trabalhadores empobrecidos, usando o “direito ao trabalho” e a “liberdade de ir e vir”, pautas do ideário da classe trabalhadora, para reforçarem seu apoio e sua base, que só aumenta.
Avaliando esse cenário, setores revolucionários que se reavaliam, e estão inseridos no trabalho de base desde o fim do ciclo insurrecional de 2013-2016, apesar de também recuarem devido ao medo da pandemia, mostram sua força e resistência. Movimentos de terras e de moradia, além de construções autônomas em diversas comunidades, por exemplo, tem demonstrado a importância da tática do apoio mútuo quando vem desde o início da pandemia, distribuindo alimentos e produtos de higiene. A pauta antirracista foi colocada à tona também, principalmente após o assassinato de George Floyd nos EUA por policiais, e de João Alberto Silveira por seguranças da rede Carrefour em Porto Alegre, que tiveram como resposta manifestações violentas aqui, como também nos EUA. Soma-se isso à luta dos trabalhadores de aplicativos que se organizam de forma exponencial protestando por melhores condições de trabalho e de vida e construindo uma rede de resistência com outros trabalhadores informais (Repórter Popular, 2021).
Ainda assim, uma luta sistemática sindical, construída pela base, vai ser encontrada na resistência de profissionais da educação em vários estados que se recusam a voltarem às escolas num período em que nos encontramos em recordes de mortes. Pressionados por setores empresariais da educação, escolas sucateadas das redes públicas apontam o retorno, mas sem condições adequadas para tal, o que tornaria esses ambientes antros de infecções e novas variantes. Tais profissionais da educação fazem diversas manifestações como podem, de acordo com o distanciamento social, carreatas, trancaços, faixas em viadutos e colagem de cartazes, além de suas paralisações, e ainda apóiam greves de outros setores, como dos trabalhadores informais, e seus atos.
Vacinação e quarentena só poderão ser conseguidas com luta
A pandemia do Covid-19, como outros fenômenos naturais, além de serem ocasionadas pela relação do sistema de produção com a natureza, suas conseqüências são marcadas por uma clara luta de classes. Temos uma vacina pronta, mas que guarda patentes que visam lucro. Nesse sentido, o atraso da vacinação, em vários casos, não é ao acaso, mas reflete como esses laboratórios servem determinados países centrais ao capitalismo e ao imperialismo global, como os EUA. O processo de automação do trabalho também garante que determinada população possa morrer sem a preocupação em déficit da força de trabalho.
No caso brasileiro, dessa vez com pouco ou nenhum auxílio, obrigados a trabalhar, e forçados a estar nos transportes coletivos lotados, a única saída nos parece a reconstrução de uma luta unindo tais setores já ativos, através de tática e estratégias novas diante da pandemia, mas que tenham como horizonte uma reconstrução de um movimento de massas, senão presencial, pelo menos conectado com a linguagem e demandas da classe trabalhadora e com comerciantes e o precariado, assim como o bolsonarismo está. Nesse sentido, a politização nos locais de moradia e ambientes de trabalho, nas aldeias e quilombos, a partir do trabalho social, a construção de alianças comuns, a luta tão evidente pela saúde pública e pela educação, a retomada de uma cultura que ocupe ruas e vias constantemente, e outras frentes, devem ser fortalecidas.
Infelizmente não existe espera nesse momento em que não existe lockdown efetivo e que o sistema de saúde já está em colapso. Assim como nossos direitos políticos e trabalhistas básicos, que foram conquistados com muita luta, a nossa cura e superação do Covid-19 também vai ser. Os caminhos dos protestos do Chile, desde o ano passado, e da onda insurrecional na Colômbia e Paraguai atualmente, apesar da intensa repressão, nos mostra o caminho. Basta sermos destemidos e inteligentes para driblar a pandemia e reconstruir nossa força social evitando contaminações e nos resguardando. A multidão, a classe trabalhadora, e todos os oprimidos, devem estar vivos nos próximos anos em que a luta de classes se acirra.
Referências
“1° de maio: Nossos direitos foram conquistados com sangue e luta!: Editorial da Campanha de Luta por Vida Digna”. Disponível em: https://reporterpopular.com.br/1-de-maio-nossos-direitos-foram-conquistados-com-sangue-e-luta/. Acesso em 1 de maio de 2021.
Dados COVID-19 disponível em https://dadoscoronavirus.dasa.com.br/. Acesso em 2 de maio de 2021.
DAVIS, Mike. Holocaustos Coloniais. São Paulo: Editora Record, 2002.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na Era do Império. São Paulo: Record, 2005.
LÊNIN, Vladimir. O Imperialismo, fase superior do capitalismo. Editora progresso: Lisboa, 1984.
“Líderes da oposição propõem renda básica emergencial durante a pandemia”. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/648307-lideres-da-oposicao-propoem-renda-basica-emergencial-durante-a-pandemia/. Acesso em 25 de abril de 2021.
LINDEN, Marcel Van der. Trabalhadores do Mundo: ensaios para uma história global do trabalho. São Paulo: Editora da Unicamp, 2009.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. n-1edicoes, 2018.
“MST completa 37 anos e mostra a força da agricultura familiar durante a pandemia”. In: https://mst.org.br. Acesso em 6 de maio de 2021.
“Os 25 maiores bilionários do mundo em 2020.” In: https://forbes.com.br/listas/2020/04/os-25-maiores-bilionarios-do-mundo-em-2020/. Acesso em 03 de maio de 2020.