Esses dias assistimos, em mais uma sessão de cinema, minha companheira e eu, ao filme A missão (1986), de Roland Joffé. É um filme sobre o início da derrocada jesuíta na América do Sul, na época colônias portuguesa e espanholas. O filme conta no elenco com Robert De Niro, o grande ator estadunidense, na época já consagrado com dois Oscars – O poderoso Chefão 2 (1974), de Francis Ford Coppola, e Touro indomável (1980), de Martin Scorsese. A missão ganhou o maior prêmio do Festival de Cannes, a Palma de Ouro, o que é uma legitimação de sua qualidade estética. Não achei para tanto, mas vamos ao filme.
O centro cultural do filme são os jesuítas, uma ordem da igreja católica. Até onde recordo, o espaço geográfico do filme se situa na fronteira, e não em um dos 3 países onde havia missões jesuíticas. Estamos no século 18 e sabemos, portanto, que se trata da fronteira do noroeste do Rio Grande do Sul com o nordeste da Argentina – as reduções jesuíticas ainda se estendiam até o sudeste do Paraguai. Os jesuítas e junto deles, claro, os indígenas, que são a outra linha de força no filme, mas com problemas, como vamos ver. A história se centra em Mendoza (Robert De Niro), um mercenário espanhol que, por remorso, decide expiar-se tornando-se jesuíta. Mudando de lado, acompanhamos o início da derrocada dos jesuítas a partir da vinda de um padre, que é o chefão dos jesuítas, e veio à América a mando dos reis de Portugal e Espanha para resolver um imbróglio.
Voltando um pouco na história, esse tal imbróglio era nada menos que o Tratado de Madrid, assinado em 1750 entre Portugal e Espanha, delimitando as fronteiras de suas colônias – Portugal cedia a Colônia de Sacramento e em troca ficava com a região onde ficavam os chamados 7 povos das missões. Acontece que os jesuítas não respeitavam essas fronteiras, porque a igreja mandava tanto ou mais que os monarcas portugueses e espanhóis. E no meio de tudo isso os indígenas, em mais um episódio de violência contra os povos originários – primeiro pela colonização, segundo pela escravização decorrente da primeira, e terceira pela violação de sua cultura com a evangelização provida pelos jesuítas, que eram católicos. Inclusive no filme percebemos momentos em que se fala isso, de forma maniqueísta separando os colonos em relação aos jesuítas – estes os bonzinhos, que querem salvaguardar os indígenas, e os colonos os violentos escravagistas. Sim, eram mesmo, mas a catequização também é uma violência, embora sem chibata.
Um episódio dessa mesma guerra foi contado no poema épico O Uraguai, de Basílio da Gama. Engraçado porque no poema os indígenas acabam tendo um papel de protagonismo e sinônimo de força e altivez, mesmo que sem querer – Basílio da Gama escreveu o poema para bajular Marquês de Pombal, prefeito de Lisboa que expulsou os jesuítas do território português em 1759. Mesmo tendo recebido educação jesuítica, Basílio da Gama, para se safar da prisão, fez esse ato de rebaixamento para agradar ao poderoso. Ao contrário, agora falando das obras de arte, ao contrário do poema, o filme A missão defende os jesuítas, portanto se coloca, do ponto de vista ideológico, ao lado do pensamento de não agir com a violência física dos colonizadores, mas catequizar, tirar a cultura dos povos originários e transformá-los em católicos, ensiná-los a tocar violino em detrimento de seus instrumentos tradicionais, deixar de crer em seus deus para ser monoteísmo católico.
O longa, ademais, pretende ver como humanos os indígenas, fotografa a natureza lindamente, a trilha composta por Morricone é estupenda e cai perfeitamente nas cenas de heroísmo e superação do branco ex-colonizador Mendoza, interpretado brilhantemente por De Niro. Não foi à toa esse monte de elogio, porque o filme realmente tem essa qualidade técnica, artística. No entanto, tudo soa muito artificial, como que deslocado. O filme parece se propor a humanizar a figura indígena, desumanizando-a. E como isso acontece? Com um protagonista branco, duplamente colonizador (porque foi colono mercenário e depois padre); com uma trilha sonora ocidental para representar sons dos povos originários; por criar cenas de paz, amizade, contiguidade entre ameríndios e colonizadores, fazendo com isso um apagamento dos traços violentos da colonização material e espiritual. Um filme interessante com problemas interessantes a serem debatidos.
Rodrigo Mendes