O debate do retorno presencial das aulas evidenciou uma série de aspectos já vivenciados há décadas, entre eles, o descaso histórico com a educação pública (escolas sem as mínimas condições de estrutura física e pedagógica); a violência constante contra educadores (os baixos salários e os discursos que colocam o professores e professoras como “vagabundos” ou incompetentes); e a impressionante desigualdade de condições entre as condições nas escolas públicas e as instituições privadas de ensino.
No momento, esses aspectos se juntam à Covid-19 e às políticas de morte de Jair Bolsonaro (sem partido), Eduardo Leite (PSDB) e Sebastião Melo (MDB), que entendem que é possível que o lucro de alguns esteja acima da vida das pessoas.
Até outubro de 2020, o ensino remoto foi uma das poucas políticas públicas massivas (além do auxílio-emergencial) para conter o crescimento do contágio, porém ele não foi acompanhado de um plano que fornecesse as condições tecnológicas para as aulas e tampouco se criou as condições de tele-trabalho para mães e pais com filhos pequenos. Também não houve, por parte do poder público, um programa de incentivo da socialização segura das crianças, com a construção de praças públicas nas periferias, por exemplo, e da alimentação saudável, com a distribuição permanente de cestas básicas e construção de hortas comunitárias. Por fim, não houve uma distribuição do auxílio-emergencial que, minimamente, garantisse o sustento integral da maioria das famílias brasileiras, especialmente nos dias atuais, já que o valor distribuído é 250 reais.
Os governos, parlamentares, empresários da educação e alguns influenciadores de mídias digitais aproveitaram esse vazio de política pública para a infância e instrumentalizaram o sofrimento das crianças. Buscaram patologizar o desconforto, o mal-estar e o sofrimento dos pequenos quanto à falta de sua rotina escolar, afirmando que a ausência presencial das escolas desenvolveria patologias nos estudantes, sem nunca sequer terem construído canais de escuta das crianças e seus responsáveis para tentar entender suas demandas. Sem ouvir, de fato, as crianças, afirmaram que seus sofrimentos eram oriundos da falta de escola e, portanto, com o retorno presencial, “aquilo” iria se resolver.
Instrumentalizaram, também, a pobreza, afirmando que as pessoas das classes sociais mais baixas eram as que mais sofriam com a falta de escola. Porém, defenderam esta ideia sem pensar no quanto a volta às aulas presenciais durante a pandemia afetaria justamente esta parcela da população. Sem nunca terem apresentado uma pesquisa séria na periferia sobre o tema e, assim, desconsiderando o que movimentos organizados alertavam, como fez a Frente Quilombola em um manifesto chamado “Por amor aos nossos filhos e filhas”. Dessa forma, defenderam o retorno de crianças das periferias para as salas de aula sem ao menos saber o que o povo realmente pensa e precisa nesse momento.
Também jogaram sujo com a questão pedagógica, ao alegarem que mais um ano sem aulas presenciais seria uma perda enorme ao processo de aprendizagem, ignorando que o maior bem de uma criança e um jovem é sua vida. Nesse aspecto, vale lembrar a manifestação emitida pela FACED (Faculdade de Educação da UFRGS) em 27 de fevereiro que, sobre os efeitos negativos do ensino remoto, afirma: “Entendemos que estas são sequelas recuperáveis, em curto e médio prazo, se houver a devida responsabilidade do poder público e dos sujeitos envolvidos. Enquanto que àquelas, deixadas pela pandemia, tendem a durar bem mais ou serem irreversíveis”.
Outro argumento falacioso é que a escola é um local seguro. Em primeiro lugar, os estudos que embasam essa falácia foram feitos em países nos quais não há escolas sucateadas, com falta de profissionais e sem condições adequadas para trabalho e estudo. Além disso, tais pesquisas não consideram as novas cepas (mais transmissíveis) e, em especial, foram feitos em locais com cenários de infecção controlada (não é o caso do Brasil, já que estamos no pior momento da pandemia).
Novos estudos, considerando as novas cepas, feitos por instituições públicas de saúde, apontam que as escolas não são locais seguros, tanto para trabalhadores da educação quanto para estudantes. É o que aponta o último relatório do Instituto Superior de Saúde da Itália que indica que a faixa etária dos 8 aos 19 anos é, atualmente, a que tem mais infectados. O relatório do sistema público de saúde do Reino Unido ainda afirma que escolas provocam três vezes mais surtos de Covid do que hospitais.
No que tange ao nosso país, os dados são bastante alarmantes, como evidência o exemplo do estado de São Paulo e a cidade de Blumenau. São Paulo já registra 1.045 casos de covid-19 entre estudantes e educadores em 15 dias letivos e um óbito (levantamento realizado pela Apeoesp, já que o governo do estado se nega a contabilizar). E a cidade de Blumenau já contabiliza 101 casos de Covid-19 em 10 dias letivos. Além dos inúmeros surtos em todas as localidades que retornaram as aulas.
Em segundo lugar, a escola somente é segura quando os membros da comunidade escolar estão protegidos, o que obviamente não é o caso da pandemia. Apesar dos números de internações e complicações em crianças e adolescentes serem inferiores aos adultos, há um número cada vez maior de internações hospitalares do público infanto-juvenil. E, além disso, a escola enquanto uma comunidade precisa transmitir o senso comunitário e a ética do cuidado a todos seus membros.
Mas a única ética que impera nos governos de turno é a ética genocida: com a iminência geral dos sistemas de saúde, Leite e Melo, além de não imporem o lockdown necessário, conforme afirmam diversas entidades de saúde, ainda querem impor o retorno presencial das escolas, mesmo em regiões de bandeira preta, mesmo sem vagas em hospitais. Para piorar o quadro, deputados do partido Novo, que destila ódio aos de baixo, articulam a votação de uma emenda ao PL 144/20. Tal emenda busca tornar a educação “atividade essencial” que, entre outros pontos, busca proibir o fechamento presencial das escolas independente da bandeira da pandemia, já que obriga o funcionamento das instituições de ensino mesmo durante “catástrofes naturais”. Além do mais, quando um serviço torna-se atividade essencial aparecem uma série de impeditivos quanto ao direito a greve e manifestação.
Porém, não será fácil para os governos calarem os educadores. Em defesa de suas vidas, dos seus familiares e dos estudantes, professores e funcionários de escola de diversas partes do país vêm organizando a resistência – sem o apoio da CUT e da CNTE – com greves. Aqui no nosso estado, o SIMPA (Sindicato dos Municipários de POA) e o SIMCA (Sindicato dos Municipários de Cachoeirinha) já deram o pontapé inicial para essa luta que deve ser de todos os professores. Deflagraram greve sanitária em defesa da vida, numa clara atitude de cuidado com suas comunidades escolares. E essas greves produziram força social e pressionaram o judiciário a cancelar as aulas presenciais em todo RS enquanto houver bandeira preta. Porém, é importante os educadores ficaram atentos a “dança” das cores da bandeira, que mudam conforme interesses empresariais e políticos.
O texto é de autoria de Patrícia Dias, professora da rede estadual de educação do Rio Grande do Sul.