O aborto é uma pauta histórica da agenda feminista, debatida e reivindicada por mulheres de todo o mundo. Não é diferente na América Latina, uma das regiões com a legislação mais restritiva no planeta.
No Brasil, de formação social fortemente patriarcal, racista e colonial, fundamentada no controle e conquista de corpos e territórios, as dificuldades para garantir esse direito ainda são muitas. Constantes ataques de um congresso conservador, bancadas fundamentalistas, setores religiosos e uma onda conservadora que acompanha o governo de Bolsonaro tentam travar esses avanços. Não sem resistência, é preciso dizer. Ainda que sem a mobilização massiva organizada na Argentina com a Onda Verde, as mulheres brasileiras têm pautado o tema e lutado para conquistar esse direito e o controle sobre seus corpos.
Em 29 de dezembro de 2020, a Argentina aprovou a legalização do aborto, resultado de uma massiva mobilização que sacudiu o país nos últimos anos. O impacto dessa conquista histórica das hermanas certamente tem influência no Brasil e provoca a reflexão sobre os desafios e a organização necessária para a legalização do aborto por aqui.
Para saber diretamente como foi esse processo na Argentina, entrevistamos, na virada do ano, a companheira Iris, da FAR (Federación Anarquista de Rosario – que integra a Coordenação Anarquista Latino-Americana, CALA) e da ATE – Rosario (Asociación de Trabajadores del Estado).
O ano de 2020 foi muito difícil, mas pelo menos acabou com uma notícia muito boa: a vitória da luta das mulheres argentinas pela legalização do aborto. No Brasil estivemos observando com muita emoção notícias e imagens, porém imaginamos que para vocês é uma emoção incrível, como é isso? Como se sentem as companheiras nesses momentos? E nos bairros, como as pessoas têm reagido?
Bom, sim, a verdade é que é muito emocionante para nós ter ganho essa luta que é histórica. Realmente estamos todas muito contentes, acreditamos que é uma vitória do movimento das mulheres e nesse sentido, como vocês bem disseram, foi um ano muito difícil mas também foi o ano em que conseguimos uma lei que vem sendo reivindicada desde muitos anos. Assim que a verdade é que estamos muito contentes, muito alegres e isso nos estimula para seguir na luta, por que nos demonstra que com luta e organização se conseguem coisas. Sabemos também que a luta não termina aqui, que este é um andar que ganhamos e vamos seguir lutando por novas conquistas, temos um monte de reivindicações como mulheres e dissidências sexuais, pelas quais temos que seguir lutando.
Vale dizer que os abortos existem, só que as ricas podem pagar e as mulheres de baixo não, assim que se realizavam abortos de maneira insegura que terminavam com consequências nefastas: desde amplos problemas de saúde até a morte, inclusive as que sobreviviam a um aborto podiam ser presas. Então sabemos que esta lei vai vir para trazer um pouco de igualdade
Em tempos recentes já se havia tentado, porém a lei não passou. O que mudou desta vez?
Sim, a lei foi apresentada em várias oportunidades e as que tiveram mais ressonância foram as de 2018 e 2020, mas porque foram acompanhadas pela mobilização popular de todas as mulheres do país. A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal Seguro e Gratuito (que vinha apresentando em reiteradas oportunidades o projeto de IVE1), foi fundada em 2005 e apresentou em diversas oportunidades o projeto de lei, porém nunca chegou a conseguir que se desse tratamento no Congresso, Desta vez o diferencial foi que em 2018 estalou a mobilização popular para acompanhar este projeto. Nos concentramos nas praças, universidades, ruas, centros sociais para debater o tema, e em geral nestes debates se distribuíam os lenços verdes que tem sido o símbolo desta luta. Acredito que o que mudou é que o debate se instalou a nível social, chegou em distintos setores sociais, saiu do armário, deixou de ser um tema tabu porque todas conhecemos alguém que havia abortado alguma vez mas nem se falava sobre isso.
E também há que se dizer que se este debate instalou-se socialmente foi graças à luta das mulheres e foi determinante para que a lei saísse. Os Encontros Nacionais de Mulheres que se realizaram amplamente em todo o país datam desde o ano 1986 onde se fez o primeiro, depois o encontro continuou sustentando e rodando por distintas províncias do país. São três dias em que se juntam centenas de milhares de mulheres para debater sobre distintas problemáticas, eu acredito que isso tem sido um pilar fundamental para iniciar a organizar a luta. Muitas companheiras nos bairros, sindicatos, universidades, escolas, onde militamos nos encontramos com quem está contra o aborto e com discussões, viagens aos Encontros, as oficinas, se chegou a compreender do que se trata, que não é isso que se difunde por aí pelos setores mais conservadores, que buscam tocar a sensibilidade faltando à verdade.
Além disso aqui na Argentina, dia 3 de Junho de 2015 foi o Ni Una Menos, que após umas sequências de feminicídios o movimento de mulheres convocou às praças de todo o país, e esse dia as praças transbordaram por centenas de milhares de mulheres que exigiam o fim da violência machista e dos feminicídios. E também os 8 de Março Dia Internacional da Mulher Trabalhadora, que nos últimos tempos se vinham realizando Greves Internacionais de Mulheres logo culminaram com mobilizações massivas.
Eu acredito que toda esta mobilização popular fez com que o tema do aborto se instalasse e obrigasse a classe política a ceder frente às exigências.
Sabemos que fundamental foi a mobilização na rua, a ação direta ao longo dos últimos anos. Como foi esse cotidiano de luta? Como foram organizadas as manifestações? Qual foi o papel e importância dos movimentos sociais, sindicatos, comitês de bairro etc? Como foi a participação das mulheres das classes mais precarizadas sobre o tema?
Me parece interessante essa pergunta para pensar que o movimento de mulheres, antes de mais nada é um movimento que é amplo, onde participam e confluem mulheres inclusive de diferentes estratos sociais mas que houve uma tradição organizativa que tem a ver com os Encontros Nacionais de Mulheres que se vem fazendo há 34 anos ininterruptamente no país, com exceção deste 2020 pela pandemia, e que além disso tem uma forte marca de ação direta, com mobilizações, ocupações de espaços públicos, etc.
O Encontro é federalista e é neste sentido que rotaciona por diferentes cidades do país em função da importância de alguma luta que ali esteja ocorrendo ou algum sucesso de grande envergadura na região, o que fez com que muitas mulheres tenham uma aproximação ao feminismo e suas lutas. Além disso, ali confluem mulheres de diferentes setores sociais como universidades, sindicatos, organizações territoriais, cooperativas etc. Muitas vezes viajar a estes encontros tornou-se uma forma de realizar debates também para dentro das organizações. Aborto foi um destes temas, entre outros que são próprios da agenda feminista: violência machista, saúde sexual e reprodutiva, diversidade sexual etc. E isso foi um pilar fundamental para contra-atacar a campanha que os setores mais conservadores fazem contra este tema.
Como mencionei antes, houveram muitos marcos de mobilização popular mas além disso em muitas cidades do país constituíram-se multissetoriais de mulheres que organizavam os distintos eventos da agenda feminista como o 8 de Março, o 3 de Junho e o 25 de Novembro assim como também frente a algum feminicídio ou casos aonde a justiça patriarcal atuava contra as mulheres, foram convocadas mobilizações de maneira imediata.
Acredito que a participação das mulheres de baixo, trabalhadoras, vizinhas dos bairros, estudantes, originárias etc, deu ao feminismo uma pegada classista no sentido de poder conjugar algumas demandas que eram próprias da agenda feminista com a situação que vivem as mulheres de baixo. O tema do aborto é um deles. Sabemos que uma mulher que conta com os recursos econômicos podia ir e pagar um aborto, enquanto que uma que não podia, tinha que recorrer a métodos inseguros. Em todos os bairros, nós mulheres conhecemos alguém que fazia esse tipo de prática de maneira clandestina ou insegura. O mesmo com a demanda da anticoncepção por exemplo que as vezes os centros de saúde nos bairros não chegam enquanto as que podem pagar acessam de forma regular.
Qual foi o papel e como se deu a participação das libertárias e libertários na luta? Como foi a relação com outras forças políticas? Houve desconfiança, tentativas de monopolizar desde uma perspectiva eleitoralista, ou foi mais um clima de colaboração e construção conjunta?
O movimento de mulheres na Argentina, como dizia antes, é amplo e convoca a diferentes setores sociais. Para nós, enquanto anarquistas, sempre foi importante estar organizadas enquanto classe social, desde baixo nos bairros, sindicatos, universidades etc. Nesse sentido, acreditamos que o feminismo é um princípio, mas também é parte fundamental de uma estratégia para combater a dominação. Sempre buscamos nas organizações fomentar a participação das companheiras em toda a vida da organização, não somente na questão de gênero. E além disso criamos nossos próprios espaços de mulheres para debater temas específicos como poder ser a violência.
Tanto do encontro nacional de mulheres e do movimento de mulheres em si participam distintas organizações sociais e políticas, assim sempre há disputas. Em geral tem a ver com a visão de feminismo e a construção da estratégia político-social. Na Argentina existe um processo crescente de institucionalização das organizações sociais em geral e do feminismo em particular, onde se deposita toda a expectativa no Estado. Nós acreditamos que a luta é desde baixo com nossas irmãs de classe. Isso ficou demonstrado com a pandemia, onde o Estado, longe de frear os feminicídios e a pesar da criação do Ministério das Mulheres, Gênero e Diversidade (que absorveu a muitas organizações feministas) os feminicídios e a violência machista cresceram exponencialmente. Eu creio que o fato de que se tenha sustentado durante tanto tempo o Encontro mostra que mesmo havendo tentativas de ser monopolizado por algum partido político isso não foi possível, e que portanto segue sendo um espaço de encontro e articulador de lutas.
E agora quais são as perspectivas? Há preocupação sobre a implementação da lei e possíveis recusas de ‘consciência’ por parte de alguns médicos como ocorre em outros países? O movimento permanecerá mobilizado? E quanto à reação das direitas e conservadores?
Bom, sim, é verdade que o tema da objeção de consciência é um tema bastante polêmico no sentido de que frente a um direito que se adquire, um agente do Estado em princípio não deveria fazer objeção de consciência. Em todo caso, não deveria trabalhar ali.
Eu creio que essa lei vai ser uma base para todo o país, na Argentina já existia um protocolo de Interrupção Legal da Gravidez (ILE), mas que cada província aderia de maneira diferente: algumas nem tinham protocolo e outras províncias aderiam plenamente ao mesmo.
Mas bom, sabemos que não vai ser fácil, da noite pro dia, então vai ter que começar a lutar para que se implemente efetivamente a lei por todo o país, de ponta a ponta.
Me parece que desde o movimento de mulheres agora se vem o desafio da implementação, há que se seguir avançando na efetiva implementação e também começar a deslegitimar a falsa informação que difundem alguns setores da igreja e setores mais conservadores que, como dizia antes, apelam a uma propaganda mentirosa, carreada de sensacionalismo onde os fetos falam, sentem etc.
Sabemos que o tema do aborto desperta muitos preconceitos porque toca um aspecto muito sensível da vida dos seres humanos, mas bom, é uma tarefa militante, com os/as trabalhadores/as da saúde, com as vizinhas nos bairros, entre as estudantes etc, fazer o debate.
Também sabemos que desde os setores conservadores vão realizar estratégias para impedir as interrupções, de fato já o vinham fazendo contra a lei, obrigando a parir meninas grávidas produto de uma violação. Então não duvidamos que preparam uma campanha contrária, mas também acredito que avançamos muito no debate social, e essa é uma grande força que temos. Muitas trabalhadoras da saúde e organizações feministas vínhamos acompanhando interrupções de gravidez com misoprostol, assim que ali há um acúmulo de experiências que vai nos permitir seguir avançando.
A luta pela legalização do aborto e para que seja público e seguro tem raízes muito profundos no movimento feminista e em muitas revoluções do século XX. Acreditam que a vitória das mulheres na Argentina é uma vitória de todas as mulheres do mundo, especialmente para a América Latina?
Sim, a verdade é que acreditamos que isto que ganhamos é fundamental, demos um revés ao patriarcado no sentido de que tocamos um pilar fundamental que tem a ver com o mandato da maternidade obrigatória, que agora questionamos, e também com outra questão que é o controle dos corpos das mulheres. Se observamos o mapa do aborto no mundo vemos que os lugares onde está proibido são os continentes atravessados pela colonização. E não é um dado menor já que na conquista, os corpos das mulheres estavam a serviço do conquistador, sendo a violência sexual uma arma fundamental tanto como a gravidez forçada para as mulheres originárias e negras. É um passo fundamental o que demos e acredito que também da um pontapé para toda a América Latina, já com a experiência do Uruguai em 2012, com a experiência da Argentina em 2020 creio que temos que avançar até a despenalização e legalização em todo o continente. Sabemos que é um desafio grande mas há que se fazer porque é reivindicar o direito a decidir sobre o próprio corpo e a autonomia das mulheres. E esperamos que este seja para as mulheres da América Latina um sinal de que há que se organizar e há que se lutar por este direito que é fundamental se queremos nos desenvolver em autonomia plena.
Bom, e por fim, você tem uma mensagem para as companheiras do Brasil, para que aqui também seja lei?
Bom, me parece que para as companheiras do Brasil, como dizia antes, essa conquista é um exemplo de que com luta e organização se conseguem as coisas e que neste sentido as companheiras terão que buscar seu caminho, sua forma, dar suas estratégias, mas tem que avançar porque não nos vamos cansar de dizer: aqui as que morriam em abortos clandestinos eram as mulheres pobres enquanto que as ricas abortavam e seguiam com sua vida. Então é uma questão de justiça também.
E bom companheiras, avante! Busquem quais são suas estratégias que melhor funcionam no Brasil, por sua história, por sua forma de ver o mundo, terão que encontrar seus símbolos, suas canções, a mística que melhor se adapte ao contexto brasileiro. Aqui os lenços tem uma ponte com a luta histórica dos organismos de direitos humanos e é um símbolo de luta e resistência.
Saibam também que contam com nosso apoio para estar na luta, para acompanhá-las até que Seja Lei!!
1Interrupción Voluntaria de Embarazo, ou seja, Interrupção Voluntária da Gravidez